sábado, 29 de maio de 2010

She don't lie, she don't lie...

Atribuiu-se a seguinte frase ao ex-governador de São Paulo e (pré)candidato tucano à sucessão de Lula, José Serra: "É impossível a Bolívia exportar 60% ou 70% da sua cocaína para o Brasil sem que o governo lá faça corpo mole". Como já se atribuiram falsamente outras frases ao próprio Serra, não vou tomar por garantido que ele tenha mesmo dito isso. Mas analisarei a "lógica" por trás do argumento.

Não para em pé.

É perfeitamente possível (e não estou dizendo que o governo boliviano esteja de fato se empenhando) ter-se essa proporção (que não sei de onde foi tirada) mesmo com o governo local se empenhando fortemente. Digamos que na situação sem controle, na Bolívia produzam-se 120 toneladas de cocaína por ano - das quais 72 ton sejam enviadas ao Brasil. Na situação em que o governo faça controle, poderia, digamos, ter uma produção de 3 ton/ano e o Brasil recebendo 1,8 ton/ano, a proporção da produção exportada para cá seria exatamente a mesma nas duas situações.

Imagine, então, o governo americano dizendo: "É impossível a Colômbia exportar 60% ou 80% de sua cocaína para os EUA sem que o governo de lá faça corpo mole". (A produção de cocaína na Colômbia em 2008 foi de 430 ton, o consumo anual dos EUA é de 270 a 400 ton por ano, cerca de 90% da cocaína consumida pelos americanos é de origem colombiana.)

No twitter, @roneymau procura defender a correção do raciocínio de Serra (ou atribuído a ele) chamando a atenção para o peso do comércio da cocaína na economia boliviana. Mas isso não tem nada a ver com a argumentação original. Poderia até ser uma justificativa para se suspeitar de corpo mole por parte das autoridades bolivianas - mas não tem nenhuma ligação com a porcentagem de venda ao Brasil (ou a qualquer lugar).

Não consegui encontrar estimativas da produção real de cocaína na Bolívia. Há a produção *potencial* com base na produção das folhas de coca. Mas boa parte da produção é consumida como folha mesmo pela população local. Adultos indígenas consomem entre 50 e 100 g de folhas de coca por dia. A população boliviana é estimada em 9.947.418 habitantes (para 2010), a população acima dos 15 anos é de 64,9%; a composição étnica é de 30% de quéchucas, 25% de aimarás; 30% de mestiços e 15% de brancos. Considerando-se apenas indígenas adultos, seriam 3,5 milhões de pessoas. Se 50%* deles consumirem 50 gramas de folha de coca por dia, em um ano teríamos: 32.400 toneladas de folhas de coca consumidas por ano. A produção de em 2008 foi de 54.000 toneladas. Nessas condições, restariam 21.600 toneladas de folhas de coca. O que equivaleria a 45 a 175 ton/ano de cocaína (a depender do teor de cocaína na folha boliviana e da eficiência do processo de refino). (A Veja diz que apenas 17% da produção de coca é destinada para consumo em folhas, o restante vira cocaína. Mas não sei de onde tiraram esse número. Com um uso médio de 50 g/dia, isso significaria que apenas 5% da população boliviana mascariam coca regularmente.)

*Representante do governo boliviano diz que 62,2% da população total (não apenas entre os indígenas) faz uso regular das folhas. Uma reportagem de O Globo de 19/fev/2006 ("Entre 'coca zero' e 'cocaína zero', a encruzilhada boliviana" de Janaína Figueiredo), atribuindo os dados a "economistas locais" (nomes não foram especificados), dizia que toda a população rural (que correspondia a 30% da população total) e 50% da urbana faziam uso regular da folha de coca. 91,4% de estudantes de enfermagem de uma universidade boliviana fizeram uso de coca nos 12 meses anteriores à pesquisa. 75% dos homens e 15% das mulheres quéchuas campesinos da província de Yamparaez mastigam coca. O número que usei: correspondente a 27% da população boliviana com mais de 15 anos - tende a ser uma subestimativa de pessoas que usam coca regularmente. Em junho deste ano deve sair o resultado da pesquisa nacional sobre o consumo tradicional de coca.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Pequeno Manual Civilizatório: Ônibus

Ônibus, assim define o Código de Trânsito Brasileiro (Lei Federal 9.503/1997): "veículo automotor de transporte coletivo com capacidade para mais de vinte passageiros, ainda que, em virtude de adaptações com vista à maior comodidade destes, transporte número menor".

Milhões de pessoas passam várias horas por dia dentro de um - indo ao trabalho, dele voltando ou se deslocando para compras, hospitais, lazer... Muitas vezes em situação precária, com tarifas abusivas, tabela de horários caótica e aos cuidados de motoristas despreparados - sem contar acidentes e assaltos.

Mas boa parte dos problemas são gerados pelos próprios usuários. Compilo abaixo algumas sugestões de pequenas ações individuais que podem tornar o convívio forçado em espaço exíguo um pouco menos estressante.

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Regra de ouro
Lei Fundamental do usuário de ônibus: entenda que é um meio de transporte coletivo. CO-LE-TI-VO.

Você *não* está sozinho. Lembre-se de que há outras pessoas. E, por mais que você as desconheça, elas, tanto quanto você, são seres humanos e têm os mesmos direitos (às vezes, mais).

As demais regras são corolários da regra de ouro.

Cheiro
Cigarro. Felizmente há legislação federal e local que proíbem o consumo de fumígeros em ônibus. Infelizmente há ainda - sorry, sem eufemismos - babacas que insistem em partilhar sua dose de câncer com outros usuários.
Em ônibus intermunicipais há ainda os que acham que fumar no banheiro não causa incômodo. Como se a fumaça não escapasse pelas frestas, circulasse pelo sistema de ar condicionado e quando o indivíduo abre a porta para sair.

Odores desagradáveis ou fortes incomodam. Evite alimentos que liberem cheiro forte: sim, nada de jaca; mas também várias marcas de salgadinhos produzem cheiros fortes (artificiais de queijo, bacon, churrasco...), chiclete sabor melancia e banana. Já tive o desprazer de sentar-me ao lado de alguém que transportava vários marmitexes de yakissoba. Ainda bem que durian não é comum por estas paragens.

Odores corporais. Sempre que necessário e possível, procure tomar um banho antes de enfrentar o busunga. Não exagere nos perfumes e desodorantes. Evite ingerir alho e alimentos ou temperos que façam seu corpo liberar cheiros fortes e desagradáveis. Alguns medicamentos têm o mesmo efeito, mas quanto a isso não há muito o que se fazer. Nunca entre bêbado - terá não apenas um cheiro insuportável de álcool, como agirá de modo inapropriado.

Espaço
Respeite o espaço alheio. Ocupe somente o espaço correspondente ao seu banco. Não invada com cotovelos, pernas e braços a zona que se projeta verticalmente para cima e para a frente do banco ao lado. O ideal é que o descanso de braço divisório seja um campo neutro - se estiver com mochila ao colo, descanse seu braço nela; se não tiver nada, cruze os braços.

Em ônibus intermunicipais com lugares marcados haverá a opção de comprar passagens para dois bancos adjacentes se lhe for imprescindível espalhar-se para além do espaço exíguo de um único banco.

Lugares marcados. Respeite-os. Se sua passagem indica um dado banco, sente-se lá. Espere o ônibus partir para ver se há outros lugares em que possa se sentar.

Assentos reservados. Não deveria precisar falar nada, mas... Se não há passageiros nas condições especificadas - idosos, grávidas, pessoas com deficiências físicas ou crianças de colo - você pode perfeitamente ocupar tais assentos, porém não durma ou finja dormir: é obrigação sua verificar a cada parada se não há portadores de necessidades especiais. Levante-se e ofereça o lugar. Mesmo se não estiver ocupando assentos reservados, seja gentil e ofereça seu lugar se houver passageiros especiais.

Encosto. Não apoie o pé no encosto do banco da frente. Vai empurrá-lo e incomodar o passageiro sentado adiante. Tampouco batuque ou fique balançando a perna de modo a vibrar o banco da frente. Ao se apoiar para se levantar, se sentar ou por outro motivo, cuidado para não prender o cabelo do passageiro à sua frente ou acertar-lhe a cabeça.

Encosto reclinável. Por incompetência muitas empresas utilizam bancos com o sistema desregulado, quebrado ou mal-projetado de modo que o encosto se reclina demais. Tenha sensibilidade e veja se não está a esmagar o passageiro de trás. Levante o encosto sempre que o ônibus parar para subida e descida de passageiros - isso facilita que as pessoas que se sentam atrás de você possam se sentar ou se levantar.

Bagagem. Não deixe que seus pertences atravanquem o corredor e o deslocamento dos passageiros. Use o bagageiro ou os mantenha aos seus pés ou em seu colo. Evite andar com pacotes muito volumosos.

Acesso. Só fique em frente às portas se for descer no ponto seguinte. Não atravanque a catraca - não fique ali se não for passar para trás (ou para a frente): tenha em mãos o cartão de embarque, o passe ou o dinheiro da passagem (se possível, trocado) para agilizar o pagamento e a liberação da catraca.

Janela
Chuva. Em ônibus urbanos, se estiver chovendo, verifique se não está respingando água nos passageiros de trás. Um pouco de abertura pode ser necessário para evitar o abafado, mas não basta que *você* não se molhe, os demais passageiros têm o mesmo direito.

Vento. Em ônibus intermunicipais que percorrem rodovias, a alta velocidade causará vento para dentro do veículo. Do mesmo modo com a chuva, veja se o vento não está incomodando outros passageiros.

Sol. Confira se o sol não está incomodando outros passageiros. Puxar a cortina para fazer sombra pode ser uma boa ideia.

Lixo. Não seja porco. Não jogue lixo pela janela. Guarde-o com você e jogue na lixeira (há ônibus com lixeiras e há lixeiras nas ruas).

Som
Música. Ninguém é obrigado a partilhar seu gosto musical (sim, as músicas de que você gosta são bregas). Use fones de ouvido. O volume não deve vazar dos fones. Por mais empolgante que seja a música, *não* cante junto (sim, você *é* desafinado). Nem batuque ou faça coreografias.

Celular. Que tal deixar no modo de vibracall? E atender somente a emergências? (Se a conversa não for urgente, pode ser travada em hora mais apropriada. Repare que isso também preservará a sua intimidade. Juro que nunca quis saber sobre as doenças venéreas do primo de ninguém...)

Conversa. Não, ninguém precisa ficar caladão durante todo o trajeto. Mas não precisa gritar para todo o ônibus saber o que você acha do cafajeste do vizinho que engravidou sua irmã. Especialmente se for uma viagem intermunicipal noturna em que muitos querem descansar durante a viagem. Também não precisa rir esbragadamente. Se for puxar conversa com o passageiro do lado, procure notar se ele está receptivo ou se não está cansado e quer dormir - respeite-o.

Jogos. Jogos eletrônicos podem ser interessantes para matar o tempo. No entanto, o barulinho pode ser irritante para os demais: use fones ou deixe o som no volume zero. O tec-tec das teclas também pode ser bem chatinho.

Comida. Abrir embalagens, desembrulhar bala, isso tudo pode fazer barulhos chatos - especialmente durante viagens noturnas. Comer salgadinhos e biscoitos crocantes também - sem falar que colocar e tirar a mão de lá também vai provocar o estalido da embalagem. Se for mascar chiclete, faça-o de boca fechada (extraia todo o ar de sua boca - senão forma bolhas na massa do chiclete que causam estalos cada vez que arrebentam).

Vocalise e outros sons. Não fique murmurando, cantarolando, falando sozinho. É estranho e chato. Nada de estalos com a boca ou dos dedos. Assovios, bochechos com a saliva, sucção de ar entre os dentes... aborrecem. Sério.

Luz
Em viagens intermunicipais noturnas, muitos passageiros querem descansar. O uso de aparelhos como celulares, laptops e games podem gerar luz que atrapalham o sono dos demais - veja se não é o caso. Ler é legal, mas pergunte ao passageiro ao lado se a luz não o está a incomodar.

Crianças
Crianças de colo choram e não tem jeito. Não adianta gritar com elas. Procure acalmá-las com paciência. Outros passageiros podem se irritar, mas não há o que se fazer.

Crianças pequenas devem ser mantidas sob controle - não apenas para não incomodar outros passageiros, mas, sobretudo, para segurança delas: deixá-las correr pelo ônibus ou pular no banco pode resultar em acidentes de consequências mais graves. O controle jamais deve ser exercido com violência - nada de tapa (isso é crime!) e sem gritos histéricos. Mas seja firme - tom duro e ar sério quando necessários. (Claro, a educação vem de casa.)

Doenças e mal estar
Evite viajar se estiver com alguma doença infecciosa: incluindo gripes e resfriados. Se tiver que viajar e estiver espirrando, leve um lenço, mantenha-o na mão e espirre nele. Assim, nada de perdigotos de destruição em massa voando por aí. E sua mão não vira um foco de novas infecções.

Se estiver meio zoado e tiver que viajar, leve duas sacolas - dessas de supermercado - coloque uma dentro da outra e forre de papel de higiênico. Se tiver que chamar o hugo, vai na sacola. Leve mais um rolo de papel higiênico ou lenços de papel para limpar a boca.

Se você sabe que ronca como um trator, evite dormir durante a viagem - procure descansar antes. Se não for possível, evite reclinar o encosto - posição reclinada tende a piorar o ronco: por gravidade a passagem aérea colaba quando seus músculos relaxam, diminuindo a passagem de ar e piorando o ronco.

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E tenham todos uma boa viagem.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Escalando problemas: Alpino Fast

Depois que se noticiou que a bebida achocolatada Alpino Fast não era feito de chocolate Alpino (embora a Nestlé diga que leve a "massa" do chocolate), a Anvisa determinou a suspensão da publicidade do produto.

Diz a lei 9.782 que, entre outras coisas, criou a agência, em seu artigo 7o, inciso XXVI:
"Art. 7º Compete à Agência proceder à implementação e à execução do disposto nos incisos II a VII do art. 2º desta Lei, devendo:
[...]
XXVI - controlar, fiscalizar e acompanhar, sob o prisma da legislação sanitária, a propaganda e publicidade de produtos submetidos ao regime de vigilância sanitária;
[...]"

Sinceramente não entendi o que a Anvisa tem a ver com o babado. No máximo, seria caso para o Procon. (Particularmente considero, sim, propaganda enganosa, mas não me parece que envolva algum risco à saúde.)

Mas isso foi no dia 18/mai/2010. No dia 20/mai/2010, estava uma peça publicitária da linha Fast, incluindo o Alpino Fast, no site do jornalista Paulo Henrique Amorim. Abaixo, imagem digitalizada da tela do navegador exibindo parte da página com a publicidade.

Isso é outra coisa que não entendi. Se está proibido, isso não seria uma violação da determinação da agência? (Ou no meio tempo isso foi revogado?)

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Café com bobagem

O jornalista Fernando Canzian da Folha de São Paulo, escreve em sua coluna sobre os efeitos do Bolsa Família no trabalho rural na cidade de Brejões - BA.

Cafeicultores não conseguem contratar catadores de café com carteira assinada, porque este grupo é formado por beneficários do Bolsa Família e eles temem perder o direito à bolsa de R$ 134,00.

Diz Canzian: "Não seria justo culpar apenas os benefícios dados pelo governo federal (como o Bolsa Família e as aposentadorias especiais) pelo o que ocorre em Brejões e em outros locais do país. Há outros problemas, como o preço do café estacionado e a falta de financiamento rural./Mas é certo que os benefícios sociais, neste caso, têm causado uma distorção tremenda no meio rural."

Bobagem. A causa não são os benefícios sociais.

Primeiro: ter carteira assinada *não* impede o recebimento da bolsa - se esse é mesmo o temor dos catadores, então a culpa é da ignorância e não do programa (e isso pode ser facilmente resolvido com uma campanha de esclarecimento).

Segundo: se a carteira comprova que o beneficiário irá receber além da renda que o inclui no programa ou novamente é ignorância do trabalhador que resolve ficar com uma renda menor ou é uma atitude racional do trabalhador, que prefere o benefício a se sujeitar a condições de trabalho que não valem a pena a maior renda. No segundo caso, o programa apenas cria uma opção ao catador -e, convenhamos, se ele opta pela ninharia dada pelo Bolsa Família, é porque a remuneração do trabalho é mesmo aviltante. Nesse caso, a culpa é do empregador que oferece baixa remuneração.

Ou seja, se há distorção, não é coisa de se culpar o Bolsa Família: ou é desconhecimento ou é ganância. Se a transformação é do Bolsa Família, neste caso em particular significa que não se trata de distorção, mas de correção de uma situação socioeconômica cujo desaparecimento não precisa ser lamentado.

Mas Canzian não é daqueles que demonizam o programa:
"O programa Bolsa Família é uma necessidade em um país de carências tão grandes como o Brasil. Custa pouco como proporção do PIB (cerca de 1%) e atinge 12,5 milhões de famílias. Ele também foi parte do 'estopim' da atual onda de crescimento e ajudou muito a distribuir a renda."

E concordo com a observação: "No entanto, ajustar os aspectos negativos do programa, assim como seu efeito pró governo de plantão, se tornou algo inadiável."

Só discordo de que o exemplo dado seja realmente um desses aspectos negativos.

domingo, 16 de maio de 2010

Dogmas e pragmas

Um tema recorrente nos círculos céticos-racionalistas (entenda aqui o ceticismo e o racionismo como o neoceticismo e o neorracionalismo e não os ceticismo e racionalismo filosóficos clássicos) é a diferença entre o pensamento religioso e o cético-racionalista (que quase sempre igualam com o pensamento científico).

É rara uma visão positivista clássica: de que as ciências forneçam um conhecimento com certeza absoluta. Mas é muito comum ainda um resquício do cientificismo, de que esse conhecimento é assintoticamente próximo de 100% de certeza (quanto mais se testa, mais certo é) e que tal conhecimento supera de tal feita os outros tipos de visão de mundo que as alternativas deveriam ser desconsideradas - ou varridas do mapa.

O pensamento religioso é, nessa visão, pautado em fé dogmática. (A maioria pensa nas religiões como alegações de verdades reveladas - características das grandes religiões monoteístas e até do budismo primitivo - em seu conceito de Nirvana ou iluminação -, uma generalização que desconsidera muitas formas de espiritualismo e religião.)

Geralmente a fé é vista como uma crença sem bases - e a fé dogmática, a crença cega e renintente: a aceitação de verdades reveladas incontestáveis e indiscutíveis. (Se assim fosse não deveríamos notar nenhuma evolução no pensamento religioso - o que não é rigorosamente verdadeiro, muitas delas passam por reformas: especialmente após períodos de crise: e se alguém lembrar das mudanças de paradigmas kuhnianos não estará tão longe, mas há também adaptações lentas, contínuas e graduais às mudanças do comportamento das pessoas. Não são raras as cismas, criando-se novas correntes ou mesmo novas religiões, mas mesmo dentro de uma linhagem contínua de tradições ocorrem tais mudanças.)

Mas dentro da perspectiva de muitos céticos-racionalistas, o racionalismo e ceticismo se baseiam na dúvida sistemática: questionando-se todo tipo de afirmações (e negações). A isso se junta um empirismo reformado: os fatos naturais e a experimentação controlada (científica) como juízes de tais afirmações.

A tais seria uma grande bobagem (não direi heresia) qualquer tentativa de paralelismo entre as visões religiosas (irracionais e crédulas por natureza, e incontestáveis para seus proponentes) e as visões cético-racionalistas (ponderadas e baseadas em fatos, e sempre sujeitas a revisões segundo seus defensores).

Concordaria que há diferenças. Mas questiono se são mesmo diametralmente opostos e mutuamente excludentes.

Sou um dos primeiros a condenar execuções baseadas em questões religiosas: p.e. dilapidação de adúlteras (raramente homens adúlteros sofrem o mesmo destino) por ferir leis divinas. "Selvageria, irracionalidade, primitivismo teocrático" são pensamentos que ecoam também em minha mente. Prender, castigar ou mesmo matar alguém porque autoridades religiosas dizem que é assim que se deve proceder. "Isso é errado aos olhos de deus", é assim e sem questionamentos.

Vejamos no entanto sob uma perspectiva comparativa mais sutil (sem com isso significar qualquer condescendência com o tipo de pensamento acima).

Os céticos-racionalistas concordam que os postulados científicos são contestáveis, estão sujeitos a mudanças (quando os fatos assim o exigirem). Isso é relativamente neutro quando se trata da descrição do funcionamento do mundo natural. "Ok, a Terra gira ao redor do Sol e não contrário. E mesmo isso poderá ser revisto se indícios novos apontarem o contrário." É uma visão liberal que tem a vantagem extra de não levar ninguém à fogueira por defender o oposto (embora críticos digam, não sem razão, que haverá a condenação à fogueira das vaidades daqueles que contrariarem o pensamento científico vigente).

Mas há um lado prático que influi de modo terrível sobre a vida das pessoas. Um exemplo fácil é a condenação de uma pessoa por, digamos homicídio, baseando-se em exames de ADN. Dizem que há uma certeza de 99,9% de que uma pessoa seja a origem de uma dada amostra de material genético. Porém essa "certeza" se baseiam na aceitação de certos postulados - por exemplo, na distribuição de certos polimorfismos na população. Não estou dizendo que o suspeito não deva ser condenado por isso (e, repito, que isso justifique a condenação por adultério de mulheres em países teocráticos). Apenas uma reflexão para que as diferenças envolvem um pouco mais de sutileza do que pontos obviamente mutuamente excludentes.

Temos "fé" suficiente em que os postulados científicos (e matemáticos) utilizados nas conclusões são firmes o bastante para justificar a condenação de pessoas (e, em certos países, mesmo à morte).

(Bom frisar também, seria grosseira simplificação - para não dizer erro - dizer que não há nenhuma oposição entre o pensamento religioso em geral e a abordagem cético-racionalista.)

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Enfim, uma voz sensata

Dom Cláudio Hummes foi direto ao ponto: "É um problema gravíssimo, intolerável. Não há lugar no ministério sacerdotal para pedófilos e eles têm que se retirar do ministério e enfrentar os tribunais comuns."

Sem subterfúgios, sem autovitimização. Como seria bom se todo o clero da ICAR assim agisse.

domingo, 9 de maio de 2010

Porra, Garcia

O jornalista Alexandre Garcia falou uma enorme bobagem sobre a questão da gravidez de mulheres soropositivas. Causou respostas bastante fortes de algumas entidades relacionadas aos direitos civis e de combate à Aids e uma dura "nota de esclarecimento" emitida pelo MS. Manifestações contrárias já haviam sido feitas em outra oportunidade em que o jornalista emitiu opinião parecida.

Infelizmente, Garcia apenas reflete uma opinião desinformada que há na população. Estranho que, como jornalista, não tenha se dado ao trabalho de buscar estudar a questão - ainda mais que não é a primeira vez.

Já disse em outras ocasiões - personalidades continuam a ser seres humanos e as suas falhas devem ser entendidas pela óptica da falibilidade de nós, humanos, mas também podemos, sim, cobrar retificações e tanto mais quanto maior a visibilidade da personalidade.

Um ponto que precisa ser entendido muito bem é que há uma diferença significativa entre *orientação* e incentivo. Do contrário, o que diriam Garcias da vida então, de programas de aconselhamento genético, em que as chances de transmissão de doenças de componentes genéticos ficam em torno de 25%? Os orientadores mostram os riscos e, quando os há, os modos de minimizá-los - sendo transparentes nas informações disponíveis: a decisão final é sempre dos pais. A responsabilidade dos orientadores é que qualquer que seja a decisão do casal - ou da mulher - ela seja uma decisão *informada*. Isso *não* é estimular. (Estímulos seriam, p.e., dar descontos nos impostos para que os casais tenham filhos. Ou mesmo dizer que eles devem ter filhos.)

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Superfreak - álcool nas ideias

Ainda não terminei de ler o "Superfreakonomics" de Steven Levitt e Stephen Dubner (2010 Ed. Campus/Elsevier, 247 pp.) - quando terminá-lo de anotar, devo publicar uma resenha em meu outro blogue -, mas já tem uma coisa que me pareceu estranha.

Entre as páginas 1 e 3, Levitt analisa o risco relativo de dirigir embrigado e andar embriagado. (Aqui tem o trecho a que me refiro.)

Os números que ele dá (referente aos Estados Unidos):
1 de 140 milhas percorridas de carro são sob o efeito do álcool (num total de 21 bilhões de milhas anuais embriagado);
1 prisão a cada 27 mil milhas percorridas de carro sob embriaguez;
mais de 1.000 pedestres embriagados morrem em acidentes de trânsito por ano;
13.000 mortes por ano em acidentes de trânsito relacionados ao álcool;
cada americano anda a pé cerca de 0,5 milha diária - com uma população de 237 milhões de pessoas acima de 16 anos, isso equivale a 43 bilhões de milhas anuais a pé;

Aí, os autores escrevem: "Se assumirmos que uma em cada 140 milhas são percorridas a pé por bêbados - a mesma proporção da milhagem por motoristas embriagados -, os americanos caminham bêbados 307 [milhões de] milhas por ano./Calculando-se a probabilidade, conclui-se que, por milha, caminhar bêbado é oito vezes mais letal que dirigir bêbado./[...] Portanto, ao deixar a festa do amigo, a decisão certa é inequívoca: dirigir é mais seguro do que andar [...]". (Grifo meu.)

Nesse caso, a se aceitar o risco de 8 vezes, as mais de 1.000 mortes passam de 1.500.

Os autores falam que isso é inequívoco. Mas há uma séria limitação nisso. Que é a parte: "Se assumirmos...". É uma suposição - e nem uma muito razoável -, isso faz com que o resultado final seja no máximo tão boa quanto essa suposição. Isso não é ser inequívoco.

Infelizmente desconheço a quantidade real de milhas percorridas por pessoas embriagadas. Os dados que consegui obter foram o número de prisões em algumas cidades da Califórnia de pessoas por "embriaguez pública" - como isso é diferente de "direção alcoolizada", podemos assumir que são pessoas que estavam em local público sem estar ao volante.

Foram 18.710 prisões em 2007. As cidades abrangidas têm uma população total de cerca de 27 milhões de pessoas. Isso dá cerca de 1 prisão a cada 1.445 pessoas por ano (contando crianças, jovens e adultos na população) - a população adulta no estado da Califórnia é de cerca de 75% (aqui) : então teríamos uma prisão a cada 1.083,64 adultos californianos.

Em contraste, a direção embriagada resultaria em 1 prisão a cada 304,71 americanos com mais de 16 anos.

Bem, não dá pra comparar os riscos de prisão porque a minoria dos estados e cidades americanos legislam sobre prisão por embriaguez pública, então não é possível extrapolar a média californiana para o país.

Mas isso nos permite desconfiar da proporção assumida de 1 milha percorrida sob influência alcoólica a cada 140 milhas percorridas a pé. Levitt enfatiza as chances baixas de prisão em caso de direção alcoolizada (volta a enfatizar as chances baixas de prisão por outros delitos - como um cliente em Chicago ter a chance de 1 prisão a cada 1.200 abordagens na rua de uma prostituta - p. 29; as prostitutas têm uma chance de prisão de 1 a cada 450 encontros - p. 37). É menos arriscado assumir que as chances de prisão são também baixas por andar a pé - então o número de prisões é uma subestimativa do total de pessoas que andam embriagadas em público.

Se uma a cada 100 pessoas que andam embriagadas na Califórnia são presas, teremos algo como 10% dos californianos andarem bêbadas - ao menos no nível alcoólico que provoca acidentes de trânsito quando à direção de um veículo automotor. É um número conservador se comparado com os dados sobre o uso de álcool pelos americanos. O chute de 1 a cada 140 milhas parece, assim, subestimar muito o quanto as pessoas andam depois de consumir bebidas alcoólicas. [Como curiosidade, na então Iugoslávia, em 2001, foram feitos estudos em 1.076 corpos autopsiados. 218 haviam morrido de causas naturais, destes, 28 (12,8%) estavam sob influência do álcool. Entre os que morreram em acidente automobilístico, 12,5% de 176 pedestres estavam alcoolizados, 7,7% de 13 motociclistas, 23,5% de 34 ciclistas e 33,8% de 74 motoristas.]

Outro sério problema. As estatísticas não comparam o grau de embriaguez. Por estudos, sabe-se que 8 dg de álcool por dl de sangue é um nível que altera perigosamente a capacidade de direção. No carro, a alta velocidade exige reflexos e atenção. As 1.500 mortes anuais de ébrios a pé podem perfeitamente se referir a pessoas excessivamente alcoolizadas (Levitt fala dos casos de pessoas que se deitam em vias públicas - e são atropeladas - somente alguém muito embriagado faz isso - literalmente e de paixão).

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Cuidado com o que você lê (vê e ouve)

Teve toda a celeuma da declaração atribuída ao (pré)candidato à presidência pelo PSDB, José Serra, durante um encontro religioso em Camboriú-SC. Notícia inicialmente publicada em um jornal catarinense reproduzia uma frase em que Serra comparava o tabagismo ao ateísmo. Correu a internet e vários blogues comentaram - interpretando como uma ofensa aos fumantes e/ou aos ateus (p.e. aqui).

Depois veio o desmentido e a correção (vide aqui).

É estranho sim que a frase originalmente atribuída seja tão diferente da frase da correção. Simplesmente não tem nada a ver. Como um erro desses pôde acontecer? (Há os que interpretam como um erro intencionado contra José Serra, há os que interpretam como servilismo da imprensa em inventar uma correção após a má repecurssão da frase.)

Vários veículos reproduziram a declaração inicial - especialmente os dos grupos RBS e Globo, que são parceiros (o jornal que inicialmente publicou a declaração é do grupo RBS): G1, O Globo, ClicRBS... O primeiro a publicar o desmentido foi o blogue do jornalista Ricardo Noblat, antes mesmo do tweet do próprio ex-governador.

Entrei em contato com o jornalista (ainda no dia 03/mai) que assinava a notícia original, ele foi solícito em confirmar o erro. Mas não consegui até o momento uma declaração dele explicando o que pode ter acontecido.*

A história é bem estranha e merece investigação - coisa que está além de minhas capacidades. Até prova em contrário, acredita-se em erro honesto, porém - embora isso seja uma forçação de barra: a desconfiança é que não foi - se não foi erro ou se não foi honesto é o que não se sabe. Seria irresponsabilidade dizer que foi uma coisa ou outra sem fazer a devida pesquisa necessária.

Aliado a isso temos casos mais engraçados - mas também preocupantes a respeito da credibilidade das fontes. O jornalista de rádio que leu um perfil da Desciclopédia sobre Lombardi (achando que era da Wikipédia - e mesmo que fosse da Wikipédia, jornalisticamente não é uma fonte confiável). E dois jornais que reproduziram textos do site humorístico Sensacionalista. O Diário de Canoas com uma falsa notícia sobre uma mulher que alega ter engravidado assistindo a um filme pornô 3D (aqui o texto original)**. E a versão online da Gazeta de Alagoas sobre a adoção de um surfista de 22 anos por um casal homossexual (aqui o original - o texto na GazetaWeb já foi removido).

*Upideite(06/mai/2010): Nos comentários, a leitora Ártemis, indica página do Bule Voador, eles conseguiram uma resposta do jornalista.
**Upideite(11/mai/2010): Aqui o sítio web Sensacionalista publica uma relação de sítios web pelo mundo que publicaram a história da gravidez por filme 3D como verdadeira.