A Justiça italiana conseguiu transformar a tragédia do terremoto de Áquila, em 2009, com cerca de 300 mortos em uma piada internacional.
Piada de mau gosto. Sete membros da Comissão Nacional para Previsão e Prevenção de Riscos Maiores, dos quais seis são cientistas (Enzo Boschi, então presidente do Instituto Nacional de Geofísica e Vulcanologia; Franco Barberi, da Universidade de Roma 3; Mauro Dolce, chefe do esceritório de risco sísmico do Departamento de Defesa Civil em Roma; Claudio Eva, da Universida de Gênova; Giulio Selvagg, diretor do Centro Nacional de Terremotos do INGV e Gian Michele Calvi, do Centro Europeu de Treinamento e Pesquisa em Engenharia de Terremoto em Pavia) e um, membro do governo (Bernardo De Bernardinis, então vice-presidente do Departamento de Defesa Civil), foram presos acusados de homicídio culposo por minimizarem os riscos de terremoto na região após uma série de abalos menores e um pouco antes do sismo mais intenso que causou mortes e destruição.
Carlos Orsi comenta sobre a decisão. E uma longa reportagem da Nature no ano passado dá detalhes da acusação.
Só o fato de se instaurar um processo nesses termos já era uma piada. A acusação alega que o processo não é motivado por falhar em prever terremotos, mas por fornecerem "informações incompletas, imprecisas e contraditórias". Então temos que prender *todos* os cientistas. A ciência é, em boa parte, motivada pelo contraditório - é isso que leva a se tentar testar hipóteses concorrentes; por natureza é incompleta, em qualquer momento é impossível se ter conhecimento de todos os aspectos possíveis e, por isso, ela é imprecisa (mesmos as medidas mais precisas comportam uma margem de erro, que é expressa numericamente em muitos relatos científicos).
Podemos ser mais caridosos quanto à acusação: seriam mais incompletas, mais imprecisas e mais contraditórias do que seria o aceitável pelos padrões dos conhecimentos científicos atuais. Ainda assim há um grande problema: essencialmente os terremotos são imprevisíveis - é possível se estimar uma probabilidade dentro de um prazo para uma dada região; mas essa probabilidade comporta necessariamente um grande grau de incerteza (somente para prazos suficientemente longos e áreas suficientemente grandes é possível se trabalhar com médias).
Ocorre que a preocupação era com uma área muito restrita: a cidade de Áquila, em um tempo igualmente restrito: um prazo de menos de um ano. Ocorre que desde 1315, na cidade, temos 10 casos de abalos de intensidade razoável (cerca de magnitude 5 ou mais na escala Richter). Considere a situação de 2009: 10 abalos grandes em 694 anos de história. Uma probabilidade de 0,144%
O que as autoridades italianas queriam que fosse dito? Que era caso de preocupação diante de uma chance de menos 1%? Vamos admitir que, sim, foram negligentes. Então, *todas* as autoridades italianas estão sendo negligentes em permitir que os habitantes de Áquila continuem morando naquela região, já que a probabilidade geral continua sendo de 0,144%/ano.
Eu sugiro que os sismólogos italianos peçam asilo no Brasil, só por garantia de não conseguirem reverter essa condenação sem sentido em seus recursos de apelação.
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