domingo, 29 de junho de 2014

"They're us. We're them and they're us."*

Inspirado em miniconto de PZ Myers.

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A brisa da madrugada lhe regelava os ossos. A fogueira Dakota estava quase extinta, mas àquela hora não convinha se aventurar nos arredores em busca de mais lenha. Encolheu-se em posição fetal sob a coberta - uma fétida pele semiapodrecida de carneiro. Há dois sóis não ingeria nada além de água suja fervida.

A Dra. Lamarino já viveu dias melhores. Fungou em um raro instante de divertimento com uma piada pessoal: pensou que também já vivera dias piores em seus, agora distantes, anos de pós-graduação.

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"Sra. Atalia, tem um rasgo no seu macacão."

"M..."

Não havia de ser nada. Só uma aborrecida quarentena de uma semana. A pressurização do traje certamente evitara a entrada de qualquer patógeno que estivera no ambiente, se é que haveria algum fora dos frascos, placas e tubos selados naquele laboratório NB-4.

170 horas depois, sem sinal de qualquer sintoma, e com todos os exames serológicos resultando em negativo, Lamarino foi promovida para o estado de observação e liberada do isolamento.

Quatro meses depois, uma leve febre. Não, não haveria de ser... haveria? Novos exames indicaram uma gripe comum. A tempo de participar de um congresso de virologia no México.

Duas semanas, já em casa, um email cancelando a visita do Dr. Romero agendada durante o congresso, por motivos de força maior. Lucio Romero, aclamado neurovirologista (e alquimista amador - suas experiências em busca da lapis philosophorum eram conhecidas, mas recobertas com um constrangido silêncio acadêmico ou atribuída à sua notória excentricidade), fora acometido por uma estranha doença de rápida evolução. Tornara-se progressivamente ansioso, irritadiço, insone, violento, e alucinado e delirante. Chegara a morder a enfermeira em um de seus acessos. Tudo isso, claro, foi mantido no mais absoluto sigilo. Ou tanto quanto foi possível se manter.

Fatos estranhos começaram a se acumular e a escalar. A enfermeira mordida também veio a se tornar agressiva e a atacar outras pessoas. "Quero meu emprego de volta!", rosnava enquanto acertava o diretor do hospital com uma cadeira. Ao fim do ano um forte sentimento de pânico havia se instalado. O protocolo Smith? fora acionado. Atire antes, pergunte depois. Casos similares começaram a pipocar ao redor do globo: Rússia, Japão, Austrália... Fronteiras foram cerradas. Espaços aéreos, fechados. Deslocamentos internos, restritos. Mas a agitação popular não pôde ser contida. Saques, linchamentos, esquartejamentos, incêndios criminosos, violações de todo tipo. Relatos de cadáveres ressurretos ávidos por carne humana. "Na cabeça, mire na cabeça!"

Artefatos nucleares chegaram a ser detonados, porém com destruição localizada. O grosso da mortandade inicial fora ação de formiguinha: civis pesadamente armados. Corpos putrefatos espalhados por toda parte. Economia, da mais básica, paralisada. Doenças e desnutrição multiplicaram por cem o efeito da carnificina inicial - que continuava, ainda que a um ritmo bem mais lento com o esgotamento das munições: armas de fogo deram lugar a equipamentos de guerra mais básicos, lanças, facas, flechas, porretes e até pedras e mãos desnudas.
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Zumbis... "Zumbis", fungou Lamarino em outro instante de divertimento. A ironia é não havia zumbi algum. Nunca houvera. Mas a mídia e a sociedade não estavam interessadas em um caso de intoxicação por metais pesados - anos de inalação de vapores de mercúrio e ingestão de chumbo, durante os experimentos alquímicos da transmutação de metais em ouro haviam afetado o sistema nervoso de Lucio Romero. Alterações iniciais de comportamento foram tidas por excentricidades de um gênio já esquisito. Apenas próximo ao estado terminal, com o agravamento do quadro, reconheceram o problema. A progressão fora bem mais lenta do que pareceu ao fim.

O ambiente estressante de um hospital nunca foi um bálsamo aos espíritos de seus funcionários. A demissão resultada de uma operação de acobertamento de um pequeno escândalo bem poderia ser o gatilho a acionar um ataque de fúria.

Entre esses dois fatos, várias histórias poderiam ser criadas. Claro que o storytelling mais cativante suplantaria quaisquer das demais alternativas. O zeitgeist funcionaria como catalisador e filtro, não importava a verdade, pouco até a verossimilitude. Afinal, o que era a verdade senão uma construção social? O pós-modernismo era a melhor muleta para o sensacionalismo. Mas o alimento era mesmo a cultura popular pelo bizarro. Zumbis. Sim, zumbis eram melhores do que envenenamento e neurose ocupacionais. A sensação da anomia - contra que governos inconfiáveis a espionarem descaradamente seus cidadãos em nada ajudavam - fazia as teorias da conspiração fermentarem. Virologista. Ah há, claro que era uma cepa a ser utilizada como bioarma. Um vírus zumbificante. Os que eram ridicularizados por anos como teóricos da conspiração estavam certos. "Eu sabia" era a reação de muitos. "Como você não quer ver a verdade, Dra. Atalia? Claro, você é mais uma vendida ao sistema da indústria farmacêutica, do complexo industrial-militar, do capitalismo imperialista."

Fatos sem correlação eram agregados pelos noticiários ávidos em angariar audiência e leitorado. Ataques histéricos que sempre houve em qualquer lugar do mundo, de repente, faziam parte de uma única pandemia.

Caça às bruxas, vendetas pessoais, pura maldade puderam extravazar sob a égide de autodefesa. Mesmo em países de legislações restritivas quanto à posse de arma não era difícil de se obter ilegalmente mesmo em situações normais. À progressão da dissolução da normalidade social tanto menor a capacidade de se fazer cumprir a ordem jurídica. A escalada era irrefreável.

Zumbis... "Zumbis", fungou Lamarino novamente. Sim, de fato havia. Um monstro do reino dos mortos a se alimentar dos vivos; uma criatura morta insensível que se recusa a se ver como tal, a fagocitar as energias vitais das frágeis criaturas viventes. Zumbis. Eles são o sistema. Zumbis. Ele são a sociedade. Zumbis. Eles somos nós. Zumbis. Nós somos eles.

***
Os primeiros raios de sol afastavam o gélido ar do interior da floresta de araucárias. Atalia Lamarino empacotou seus parcos pertences. Sua barriga roncava, mas aquele local não era seguro. Havia ainda hordas de bandoleiros por ali. Procuraria outro lugar. Um lugar mais afastado do que restava de zumbis sobreviventes. Um lugar onde pudesse finalmente terminar de ler seu exemplar do Manual Compacto dos Escoteiros-Mirim. Poderia aprender a fazer um pão de caçador, o que lhe garantiria um recurso mais estável de comida. Por ora, era caminhar.

Caminhar pra algum destino indefinido. A febre, que jamais lhe abandonara por completo nestes anos caóticos, recomeçara. Mas aquele local não era seguro.

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* Barbara, The Night of the Living Dead, 1990

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Pra que servem pesquisas de percepção de corrupção? Aparentemente, não pra medir corrupção.

Corrupção é um tema que é praticamente unanimidade. Ninguém se diz a favor - obviamente principalmente quem se locupleta dela. Pode ser mais ou pode ser menos escancarada, mas, de modo geral, tende a ocorrer às esconsas - em quase todos os países existem leis para punir tais práticas.

Por essa natureza, é difícil mensurá-la diretamente. Aí partem-se para metodologias indiretas. Uma das mais famosas é o Índice de Percepção de Corrupção da Transparência Internacional. A imprensa nacional o adora - especialmente para destacar as posições ruins que o Brasil costuma ter, casando-se com a ideia que todos temos que nosso país é o campeão da corrupção.

Muitas vezes a listagem do índice é apresentada como ranking da corrupção - a ideia de que se trata de um índice de *percepção* passa praticamente despercebidoa, especialmente por se tratar de um indicador numérico: número é algo objetivo, né?

Bem, a medição do tamanho absoluto da corrupção - quanto em dinheiro é desviado efetivamente - é difícil, mas há um punhado de estudos de estimativas para alguns países. Compilei os que encontrei e confrontei com os valores do IPC. O resultado está no gráfico abaixo.

Figura 1. Correlação entre corrupção percebida e a corrupção efetiva nos países.

Com os 21 pontos que consegui obter, para 14 países: Afeganistão (2 pontos), Brasil (2 pontos - em cores diferentes no gráfico), Colômbia, Grécia, Índia, Itália, México, Peru, Filipinas (6 pontos), Rússia, Espanha, Uganda e Vietnã - não obtive nenhuma relação entre a corrupção percebida e a corrupção efetiva. No máximo, dois blocões - um em que o nível de corrupção é severo - acima de 20% do PIB - e outro em que é menos pronunciado - abaixo de 10% do PIB. No blocão da corrupção severa, há até uma tendência oposta ao que deveria ser: os pontos com maior desvio efetivo de dinheiro, correspondem a uma percepção melhor.

Há várias falhas na metodologia adotada pela Transparência Internacional em seus levantamentos. Mesmo como indicador de percepção: os números de observadores tendem a ser muito pequenos. A média é de 7 relatórios por país, mas em vários há 4 observadores ou menos. É difícil também de se avaliar a homogeneidade dos observadores entre diferentes países - e certamente há uma heterogeneidade entre os observadores do mesmo país (pelos valores máximos e mínimos das notas que a instituição divulga para cada país avaliado).

Se é forte com base apenas neste pequeno levantamento que fiz dizer que o IPC é completamente inútil e deve ser abandonado, certamente a Transparência Internacional precisa apresentar uma validação mais vigorosa da relevância do estudo. Preocupa-me que agências de risco e de investimento se baseiem nesses estudos de percepção para avaliar as opções de aporte financeiro. Podem estar a se basear unicamente em preconceitos individuais - um único avaliador que exagere na boa ou na má avaliação afeta fortemente o índice para um dado país.

Upideite(24/jul/2014): Gráfico atualizado com o dado de estimativa para a Alemanha (2007), em vermelho:
Upideite(25/fev/2015): Plotando os valores dos IPC contra as estimativas de evasão fiscal por sonegação de impostos também temos uma relação problemática para considerar o IPC como uma boa medida da corrupção efetiva do país.
Países com taxas similares de evasão apresentam índices bastante díspares de corrupção percebida (p.e.: Japão, Estados Unidos, China e México ou Reino Unido, Alemanha, Espanha, República da Coreia, Turquia e Argentina). Países com índices de corrupção percebida similares também apresentam valores bem diferentes de evasãofiscal: p.e. México, Argentina, Benin e Bolívia. (ht @sibelefausto)

Upideite(01/mar/2015): O índice não é completamente inútil, após fazer uma correção dos índices estimados de evasão tributária em relação ao tamanho do PIB pela relação que há entre o índice de evasão e o tamanho da carga tributária, parece haver um fraco poder preditivo do CPI em relação à evasão tributária.


Upideite(04/fev/2017): Gráfico atualizado com mais estimativas para a Alemanha (DE) e para os Estados Unidos (US):

sábado, 14 de junho de 2014

Segundo clichê: os lugares comuns da cobertura da Copa

Reportagens manjadas para se cobrir...

A Copa

Pratos típicos dos países das seleções;
Entrevistar imigrantes dos países das seleções e seus descendentes;
Entrevistar brasileiros que moram nos países das seleções;
Eleição da musa da Copa;
Reportagem sobre os jogadores que as mulheres acham mais bonitos;
Reportagem sobre previsões de animais videntes;
Reportagem sobre previsões de adivinhos;
Reportagem sobre previsões de estatísticos;
Reportagem sobre a opinião da criançada;
Reportagem sobre troca de figurinhas da Copa;
Imagens dos torcedores mais bizarros.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Crise na USP: por que desconfio que cobrança de mensalidade não é a panaceia

Não sou contra a tese de cobrança de mensalidade em IES públicas. Já fui terminantemente contra, mas tendo a achar justo que, os que podem contribuir, paguem mensalidades.

A instituição de universidades públicas pagas não é uma tese nova. Já rolava no tempo de minha graduação nos anos de 1990, durante os governos de FHC. Volta à tona com a agudização da crise financeira da USP e das outras estaduais paulistas.

Sabine Righetti, em seu blogue Abecedário, na Folha, sugere que a cobrança pelos cursos tiraria a principal universidade brasileira do vermelho. Eu sou bem reticente quanto a isso.

Reconhecendo o vespeiro que seria instituir a cobrança pelos cursos de graduação, ela diz que se poderiam cobrar pelos cursos de especialização ("Mas, ok, deixando a graduação de fora da matemática. Por que não cobrar da pós-graduação?") - as empresas em que os alunos estudam poderiam bancar os custos. Bem, não vejo essa valorização toda pelas empresas por cursos de pós lato sensu - há não poucos casos em que os alunos precisam brigar ou implorar muito para o patrão para poderem cursar as especializações. Mas digamos que essa questão seja superável.

Há, em 2014, 19 cursos de especialização/MBA na USP - todos pagos - com 1.378 vagas. Se forem cobrados uma média de 30.000 BRL de anuidade por aluno, isso corresponderia a uma receita de 41.340.000 BRL. Respeitável, mas bem longe de cobrir um déficit orçamentário na casa dos 400 milhões BRL. Para que a pós lato sensu desse conta, ela teria que ser expandida pelo menos 10 vezes - a própria expansão geraria custos (instalações, docentes, burocracia, material de consumo) - e desviaria substancialmente a USP de suas funções como universidade pública. Uma alternativa seria cobrar anuidades mais substanciais. Mas haveria procura? Não estou dizendo que seja impossível, apenas apresentando algumas das dificuldades dessa proposta.

Um dos problemas dessas propostas de soluções de problemas reais - e isso vale para qualquer área de questões de políticas públicas - é o excesso de idealizações.

E quanto à graduação? Em 2009, só 13,52% dos alunos ingressantes eram das classes A/B. Projetando essa proporção para o universo de  92.064, serão algo como 12.500 alunos. Cobrando uma anuidade média de 30.000 BRL, seriam 373.411.584 BRL. Suficiente para cobrir o rombo atual.

O problema é saber se essa elite continuaria nas estaduais paulistas sendo que haveria a possibilidade de tentarem outras IES públicas gratuitas - estaduais de outros estados e as federais. Ou mesmo para IES privadas de reputação relativamente boa, mas mais baratas.

A cobrança de mensalidades nas IEES paulistas depende também de emenda da Constituição do Estado*.
"Artigo 52 - Nos termos do art. 253 desta Constituição e do art. 60, parágrafo único do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal, o Poder Público Estadual implantará ensino superior público e gratuito nas regiões de maior densidade populacional, no prazo de até três anos, estendendo às unidades das universidades públicas estaduais e diversificando os cursos de acordo com as necessidades sócio-econômicas dessas regiões." (grifo meu)

Enfatizo que, como disse antes, não sou contrário à cobrança de mensalidades. (Elas serviriam justamente para equalizar os subsídios - a gratuidade do ensino superior. Se o corte socioeconômico mais alto quiser utilizar o serviço, deve pagar a taxa - mensalidade. Se não quiser pagar a taxa, abre espaço para o público para quem o subsídio deveria ser voltado.) Boto minhas barbas de molho quando elas são apresentadas como a salvação da lavoura.

Parcerias com empresas para pesquisas? Ok também. Mas haveria demanda suficiente? Com todos os programas de incentivo - inclusive com financiamento a fundo perdido - os investimentos em P&D nas instituições privadas são menores do que os investimentos públicos. E outro: como evitar que a dependência por investimentos privados nas pesquisas não distorcesse (ainda mais) toda a pesquisa quanto a suas prioridades? P.e. é notório que a questão da pouca pesquisa em doenças tropicais negligenciadas é fruto do desinteresse comercial por parte da Big Pharma e dos países industrializados. Como convencer empresas privadas a investirem na pesquisa historiográfica dos séculos 16 a 19?

Um perigo real dessas fontes independentes de financiamento das universidades é que os governos reduzam, por outro lado, o repasse das verbas. Isso ocorreu quando da instituição do IPMF - depois CPMF - para destinação à saúde. Inicialmente, Adib Jatene capitaneou a aprovação do dispositivo fiscal para *aumentar* a verba total investida na saúde. Mas a área econômica, espertamente, retirou o aporte orçamentário, descompensando o que seria ganho com a CPMF.

Uma coisa curiosa de se notar é que um dos argumentos contrários a um aumento da dotação orçamentária das estaduais paulistas pelo aumento da alíquota do ICMS destinada a elas - de 9,57% atuais para 11,6% - é que não adiantaria nada, já que o problema é a má administração. É um argumento correto, mas parcial. Sim, é preciso uma administração eficiente dos recursos; porém é parcial quando não se considera que as demais alternativas apresentadas: cobrança de mensalidades, estacionamento, loteamento dos espaços pra exploração pela iniciativa privada, etc. também seriam inúteis diante de má gestão orçamentária.

Mas mesmo com uma boa administração o orçamento das universidades estaduais (e outras públicas) *precisa* ser expandido. Os salários estão defasados (a própria Folha noticiou como é complicado encontrar docentes em certas áreas pela concorrência com a iniciativa privada) - fora outros investimentos que precisam ser feitos (muitos prédios estão caindo aos pedaços e necessitam de reforma e expansão; novas vagas precisam ser criadas; laboratórios precisam ser modernizados...).

Podemos (e devemos), sim, discutir as soluções para a crise, inclusive a instituição de mensalidades. Mas essa discussão precisa ser feita em base realista. Sem criar barreiras imaginárias intransponíveis para as alternativas de que não se gosta, ao mesmo tempo em que se ignoram as dificuldades das propostas que se defende.

*Upideite(07/jun/2014): Seria preciso emendar também a constituição federal, já que o inc. IV do art. 206 prevê: "IV - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais".