sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Mitos sobre a fosfoetanolamina

1) a fosfoetanolamina passou nos testes pré-clínicos
Não exatamente. Há testes pré-clínicos indicando resultados promissores: in vitro (com células de cultura derivadas de tecidos tumorais humanos) e in vivo (em camundongos com tecidos tumorais humanos). Porém, é discutível de que apenas esses testes sejam suficientes para justificar já a passagem para os testes clínicos (em humanos) - e certamente não justificam a aplicação terapêutica em humanos: o próprio autor principal de vários desses testes, o farmacêutico Adilson Kleber Ferreira, considera que são necessários ainda mais testes pré-clínicos antes de ir para o teste com humanos.

2) a fosfoetanolamina era distribuída há anos para pacientes com tumor, isso prova que é segura
Não. Não foi distribuída de modo controlado com o devido acompanhamento médico. Efeitos colaterais importantes podem ter sido deixados de ser relatados. Se a distribuição é indício de alguma coisa é que falta fiscalização e punição quanto ao exercício irregular de medicina e violação da lei sobre produção e distribuição de compostos com fins terapêuticos.

Além disso, há relatos também da ineficácia da fosfoetanolamina. De novo, isso também não é prova de que a fosfoetanolamina seja ineficaz. É preciso que se façam testes controlados.

3) a fosfoetanolamina é produzida naturalmente pelo organismo humano, então deve ser segura
Pode não ser. A fosfoetanolamina sintética é administrada em doses muito maiores do que a naturalmente produzida (a concentração em tecidos de ratos é por volta de 0,35 g/kg; a dose administrada em testes é de cerca de 0,8 g/kg por via oral; em testes com aplicação intraperitoneal, as doses variam de 0,035 a 0,07 g/kg - em ratos, a DL50 oral da o-fosforiletanolamina é de 5,82 g/kg, em camundongos, a DL50 intravenosa é de 0,639 g/kg**) e pode conter contaminantes - especialmente se produzidas em condições quase artesanais em um laboratório universitário.

*A vitamina D é naturalmente sintetizada pelo corpo humano - a exposição normal ao sol permite a produção endógena de algo entre 15.10^-6 a 15.10^-5 g por dia. Mas doses diárias de 10.000 UI - cerca de 0,00025 g (25.10^-5) - são tóxicas.

4) os casos relatados de pacientes que tomaram a fosfoetanolamina e se curaram mostram que o composto é eficaz
Não. Há uma boa porcentagem de casos de remissão espontânea do câncer. Além disso, não há como atribuir a cura à fosfoetanolamina e não a outras causas (como outras terapias realizadas em conjunto) justamente por falta de controle: os pacientes se curaram por causa da fosfoetanolamina ou a despeito dela?

5) a indústria farmacêutica não tem interesse em algo barato como a fosfoetanolamina
Ao contrário. Algo que *custe* barato pode proporcionar uma margem de *lucro* *maior*. Se 60 cápsulas por mês custam R$ 1,60; se isso for vendido a R$ 1.000, será um lucro muito mais extraordinário do que a margem média da indústria farmacêutica - de 10 a 40% (20% na média). A aspirina movimenta mais de 1 bilhão USD ao ano e dá lucro de 80%, custando centavos.

6) são pacientes terminais, não têm nada a perder em tomar a fosfoetanolamina mesmo sem testes
Não é bem assim. Podem perder a vida, podem ficar em uma situação ainda pior, não sabemos sem os devidos testes.

7) então devem ser feitos imediatamente testes com a fosfoetanolamina
Depende. Como dito no item 1, é discutível que os testes pré-clínicos realizados até o momento sejam suficientes para se passar já para a fase clínica. Mesmo que se considere que seja justificado, há que se pensar na questão dos custos dos estudos: quem devem pagar?

Os pesquisadores detentores da patente do método de síntese de fosfoetanolamina recusaram-se a cedê-la para parceiros - como a Fiocruz - interessados em industrializar o composto e testá-lo. O dinheiro público deve bancar os testes de milhões de reais para que os pesquisadores façam dinheiro sem riscos financeiros maiores caso o composto seja bem sucedido para entrar no mercado?

Por que esse dinheiro deve ser investido na fosfoetanolamina e não nos testes e desenvolvimento de outros compostos tão ou mais promissores? Já há tratamento eficaz para vários tipos de câncer, inclusive para os tipos contra os quais a fosfoetanolamina demonstrou efeito em testes in vitro; por que deve ter prioridade sobre o desenvolvimento de medicamentos para doenças ainda sem cura nem tratamento ou que atingem mais pessoas?

Pode ser que a resposta a essas questões seja favorável a se despender dinheiro público para se testar a fosfoetanolamina, mas isso depende de uma deliberação ponderada sobre o tema. Não de uma troca de desinformação.

(contribuição do físico Leandro Tessler, autor do Cultura Científica)*
"8) Fosfoetanolamina foi sintetizada pela primeira vez na USP
Existe no mercado fosfoetanolamina para venda comercialmente. A equipe da USP desenvolveu uma metodologia alternativa para sua síntese. Se políticos ou juízes querem fornecer o composto a pacientes ao arrepio da lei podem fazê-lo sem envolver a USP que claramente tem uma posição institucional contrária."

9) O caso da fosfoetanolamina encaixa-se no 'uso compassivo'
Pela legislação em vigor, há três situações no Brasil de acesso permitido - após a devida autorização pela Anvisa - a pacientes de compostos medicamentosos ainda sem o registro: o programa de acesso expandido. o uso compassivo e o programa de fornecimento pós-estudo.

Não se trata de nenhum dos casos porque é preciso que se trate de composto que esteja em pesquisa clínica. Até o momento, não se trata disso. Assim que se iniciarem os estudos encomendados pelo MCTI em parceria com a Anvisa, poderá haver a permissão de 'uso compassivo'; a alternativa de 'acesso expandido' será possível somente a partir da fase 3 dos testes. Naturalmente, somente após o término dos testes clínicos, é admissível o 'fornecimento pós-estudo'.

A distribuição realizada até o momento, portanto, não está de acordo com o regulamento da Anvisa: criado em 2013.

*Upideite(31/out/2015): adido a esta data.
**Upideite(02/nov/2015): adido a esta data.

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Não é sobre Cachinhos Dourados

Este é meu segundo conto de ficção pretensamente científica (cientificóide mais exatamente). (Terceiro se contarmos um sobre zumbis - não exatamente sobre zumbis - como FC.)
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Huwasuyisha, o pequeno anão cientista, começou a gargalhar. A princípio ninguém entendeu. Huwa explicou o que acabara de ouvir. Então fez-se um silêncio constrangedor. Não que se tivesse dito alguma coisa absurda, houvesse se quebrado alguma norma social. Apenas que os companheiros leigos não conseguiam alcançar o raciocínio de Huwa. Ele, então, começou a explicar o que era tão engraçado naqueles zunidos que ele captara.

O parágrafo acima, na verdade, contém algumas incorreções – um tanto inevitáveis pela necessidade de aproximações conceituais. Do mesmo modo que um “grande pássaro metálico” é uma aproximação do conceito de avião.

'Huwasuyisha' é uma aproximação fonética de algo que nem mesmo é originalmente fonético. Seu nome é dado em termos de ondas gravitacionais, não sonoras. O sistema Ligo seria capaz de detectá-lo – se estivesse algumas dezenas de Gigaparsecs mais próximo – quando emitido por um dos seres a cuja 'espécie' (ou 'tribo') pertence Huwa, os guranihaya (ou garanihaya). A frequência da oscilação interferométrica convertida em som resultaria em uma 'fala' gutural. Mas ainda assim o som resultante seria tão equivalente a 'Huwasuyisha' quanto 'bem-te-vi' corresponde de fato ao canto emitido pela ave. O mesmo para a denominação 'guranihaya'.

O anão é por comparação. Como uma estrela anã é gigantesca em comparação a planetas considerados gigantes. Huwa tem bem algumas centenas de anos-luz em sua dimensão mais longa. Um décimo de seus companheiros nas cercanias. Mas é uma estimativa grosseira. É difícil estabelecer os limites de um indivíduo guranihaya.

É mais incerto que se possa considerar o conjunto de ondas gravitacionais emitidas de 'gargalhadas'. Mas elas são produzidas de modo consistentemente associado a situações de quebras de expectativas. Poderiam, de outro modo, ser interpretadas como 'suspiros de decepção', no entanto.

'Ouvir' certamente não é algo a ser tomado literalmente para percepção e decodificação de sinais constituídos por ondas gravitacionais. 'Silêncio' não é um termo tão ruim para se referir a um período de cessação de sinais comunicativos, mesmo considerando-se o 'ruído' de fundo. O 'constrangedor' é certamente uma licença poética; porém, certamente nada inadequado se compararmos com o uso alternativo de termos como 'de apoio'. Do mesmo modo que 'ouvir', 'dizer' é uma analogia para se referir a uma emissão de sinais: o que os vaga-lumes 'dizem' com sua luz?

'Norma social' é um palpite arriscado; é possível se referir a um conjunto de seres intercomunicantes de algum nível de inteligência de sociedade? Os humanos aceitam falar em 'sociedade das formigas', mesmo considerando-se a inteligência limitada exibida por seus constituintes, principalmente pelas atividades realizadas de modo coordenado garantindo o funcionamento do conjunto. É difícil detectar atividades coordenadas entre os guranihaya. Não há algo que se possa considerar como construção, menos ainda como produto de ações coletivas. Porém, aparentemente há uma cultura desenvolvida. E mesmo uma ciência – o conjunto de conhecimentos acerca do mundo natural e os processos de obter tais conhecimentos. Ainda que não partilhada nem apreciada por todos os indivíduos que se identificam como guranihaya.

Os guranihaya são criaturas – novamente, usando criatura por aproximação conceitual – constituídas não pela matéria comum, mas por uma matéria ainda mais comum (em termos de abundância no universo): a matéria escura. Em princípio a matéria escura interage apenas gravitacionalmente; não forma átomos, pela falta de interação elétrica. Bem, ao menos não átomos como conhecemos. Ocorre que, resultantes do decaimento de oscilons primordiais de inflatons, a própria matéria escura herdou o caráter oscilatório. Oscilons em fases opostas se atraem de modo similar a que partículas de matérias de cargas elétricas opostas se atraem; enquanto oscilons em fases sincrônicas se repelem. 'Átomos' de matéria escura formam 'moléculas' de matéria escura. Níveis maiores de oscilação colocam conjuntos inteiros de 'moléculas' – de bilhões e bilhões e bilhões e bilhões... de mols de 'moléculas' – em ressonância (sem comprometer as oscilações individuais). Massas de tamanho aproximado de uma bola de basquete formam unidades de ressonância. As unidades de ressonância interagem entre si formando sistemas FPUT em vez de termalizarem em sistemas ergódicos e vibrarem em uma mesma frequência. Não está certo se sólitons ou fónons atuam como transportadores de energia ao longo do sistema. Um ou outro serve como base para o processamento básico de sinais no interior dos guranihaya – embora o termo 'interior' seja mal aplicado por ser difícil, como dito, traçar os limites externos de um guranihaya. Um modo de diferenciar um indivíduo de outro é pela frequência mais baixa de oscilação – que envolve todo o sistema. Em teoria. Na prática, há variação dessa frequência, e é difícil de saber se uma dada unidade de ressonância (ou mesmo unidades maiores) faz ou não parte de um indivíduo. Mas isso é um problema de escala – visto a milhões de anos-luz de distância, cada indivíduo parece mesmo um indivíduo e estável (isso se fosse possível vê-los). Humanos também – vistos bem de perto, beeeeem de perto, é difícil delimitar um indivíduo: átomos e moléculas chegam e saem o tempo todo.

Vivem no interior dos vazios cósmicos. Esses seres são ilhas de concentração de matéria escura em um espaço particularmente rarefeito de matéria. Com integridade mantida basicamente pela força gravitacional de seus componentes, um garanihaya, sem forças elétricas a manterem seus 'átomos' reunidos, seria destroçado se se aproximasse demais dos filamentos galáticos.

A vida reprodutiva de Huwa e seus amigos – talvez seja forçar a amizade falar em 'amigos' –, bem grosso modo, é um canhão deslizante em um jogo da vida de John Conway. Com a diferença de que as 'naves espaciais' (ou sementes) lançadas pelo canhão crescem com o tempo – com muito, muito tempo –, gerando novos canhões. Não apenas o ritmo de crescimento dos garanihaya é algo extremamente lento, mas tudo o que diz respeito a eles. Um sinal para atravessar de uma extremidade a outra de um indivíduo – sempre levando em conta as dificuldades inerentes de determinar as extremidades e mesmo os indivíduos – leva centenas de milhares de anos. Mas, naturalmente, um garanihaya não interpreta esse ritmo como lento, é um piscar de olhos para eles – ainda que “piscar de olhos” seja uma expressão que jamais lhes faria sentido. O canhão pode ter consequências não apenas de gerar novos guranihayas, mas também de eliminar alguns. Ocasionalmente, a mira pode ser defeituosa e a nave "chocar-se" contra alguém nas vizinhanças. ("Choque" entre aspas porque os guranihayas não são exatamente constituídos de matéria mutuamente impenetráveis, outra consequência de não serem formados por átomos resultantes de interações elétricas. As forças de atração e repulsão entre solitons não impedem que partículas de matéria escura atravessem uma massa de matéria escura.) A nave pode perturbar as configurações ressonantes no interior de um indivíduo de modo disruptivo ou, com seu crescimento, canibalizar as unidades de ressonância. Em raras ocasiões, pode crescer compartilhando as unidades com seu hospedeiro, sem lhe causar maiores danos.

Ondas gravitacionais são a vida e a morte dos garanihaya. São seu modo de comunicação, e seu alimento – coletando as ondas gravitacionais que viajam pelo espaço recolhem a energia que os faz funcionarem. Mas a exposição a certas frequências de ondas desestabiliza todo o sistema, destruindo-os. Outras frequências podem modificá-los, alterando mesmo o funcionamento dos canhões e, o que mais importa, das naves, gerando indivíduos diferentes: em tamanho, por exemplo.

O que Huwasuyisha havia recolhido naquele dia – e dia é um conceito que definitivamente não faz sentido entre os garanihaya – era um sinal extremamente compacto – do ponto de vista dos garanihaya – emitido bilhões de anos atrás codificado na forma de ondas gravitacionais. Alguém havia achado uma boa ideia lançar ao espaço mensagens de saudações e outras informações assim apenas porque podia – e talvez com algum otimismo de que alguém respondesse a tempo, e com bom grau de irresponsabilidade por confiar na sorte de que esse alguém fosse amistoso. Levou um certo tempo – algumas dezenas de milhões de anos – para Huwa decodificá-la em seus próprios termos. Instruções sobre correspondências binárias e outros truques matemáticos certamente ajudaram a encontrar regularidade suficiente para ser possível a decifração e irregularidade suficiente para tornar a mensagem interessante. A parte engraçada dizia respeito ao conceito de 'zona de habitabilidade'. Era algo que alguns indivíduos garanihaya haviam desenvolvido com sua ciência. Mas o entendimento do que seria uma zona habitável para as criaturas que lançaram a mensagem ao espaço era tão díspar que só restava a Huwa rir desbragadamente segurando a barriga com as duas mãos – exceto que, como sugerido anteriormente, 'rir' seja um conceito arriscado e definitivamente 'barriga' e 'mãos' não se aplicassem aos garanihaya.

Os amigos de Huwa escutaram – modo de dizer – com atenção a Huwa e sua explicação. Decidiram rir, então, para recompensá-lo por seu esforço e não magoar seus sentimentos (se 'mágoa' e 'sentimentos' são expressões que cabem à situação), disfarçando que ainda não compreendiam o que significavam 'calor', 'luz', 'água', 'líquida'... Por 'sol' e 'planeta' parecia ser o equivalente a algo que deveria estar nas regiões distantes, bem distantes, onde a intensa gravidade tornava tudo mortal.
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terça-feira, 6 de outubro de 2015

O Santo Sudário

Uma análise recém-publicada mostra que não há diferenças nos perfis de espectrometria de massa de carbono-14 em amostras do Sudário de Turim quando se levam em conta contaminantes orgânicos.

"Abstract
This is an editorial regarding a paper published on Thermochimica Acta (R.N. Rogers, Thermochimca Acta, 425 (2005) 189–194). A close-up analysis of the pyrolysis-mass spectra reported in the original paper reveals that the differences found between the samples coming from different parts of the Shroud are just due to the presence of a contaminant with a long aliphatic chain. Except for the presence of the contaminant, the two pyrolysis-mass spectra look alike rather than different. Therefore, the pseudoscientific theory stating that the C14 sample might come from a “medieval invisible mending” remains unsupported by evidences."

["Resumo
Isto é uma mensagem editorial a respeito do artigo publicado em Thermochimica Acta (R.B. Rogers, Thermochimica Acta, 425 (2005) 189-194). Uma análise mais detalhada dos espectros de massa por método pirolítico relatados no artigo original revela que as diferenças encontradas entre as amostras de diferentes partes do sudário devem se apenas à presença de contaminantes de longas cadeias alifáticas. Exceto pela presença de contaminantes, os dois espectros de massa por pirólise são semelhantes e não diferentes. Assim, a teoria pseudocientífica que afirma que a amostra de C14 viria de uma 'emenda medieval invisível' mantém-se sem apoio em indícios."]

(Não chamaria exatamente de pseudocientífica, já que pode ser submetida a testes. Diria que é uma hipótese refutada. Embora possa ser chamada de pseudocientífica na medida em que seja defendida a despeito das refutações empíricas.)

Joe Nickell do CFI (Center for Inquiry) escreve sobre o tema no blog da instituição.*

Abaixo reproduzo texto meu de 2007 no Observatório da Imprensa (atualmente não está mais no ar - há apenas uma cópia no Internet Archive).

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GALILEU O Santo Sudário

Roberto Takata (*)

Reciclar lixo não é a panacéia que resolverá todos os problemas dos resíduos sólidos produzidos em nosso modo "civilizado" de viver. Pode até mesmo causar mais problemas do que resolver, se não for planejado e aplicado adequadamente: e.g. se se fosse branquear o papel reciclado seria gerada uma quantidade maior de poluentes do que na produção de papel comum. Ainda assim – repiso, se bem planejados –, os programas de reciclagem podem ser um grande aliado na batalha pela melhoria da qualidade de vida da população e na conscientização para o exercício da cidadania.

Alguns vestibulares mais preocupados com a capacidade de raciocínio do que de memorização realizam o que se pode chamar de "reciclagem de informações". Questões são formuladas para que o candidato interprete um trecho de livro ou de artigo retirado do noticiário e reflita sobre o seu significado. Podemos realizar este exercício com um artigo de recente edição de Galileu (outubro de 1999). Antes, porém, um esclarecimento: não cuide, leitora (ou leitor) ser implicância minha com a revista ou com o autor do artigo, posto que não é a primeira vez que me pronuncio desfavoravelmente a um texto ali publicado. Quero apenas tecer algumas críticas, em meu julgamento, construtivas; afinal acredito que apontar erros é um passo para solucioná-los, sendo em última instância uma contribuição na busca do aperfeiçoamento constante do trabalho.

O texto referido é "Mistério e fascínio do Santo Sudário". Começa nos informando encontrarem-se presos à trama do tecido pólens mais antigos do que a idade estimada para o sudário pelos cientistas num teste feito em 1988. Segue afirmando ter sido sensacionalista a divulgação, à época, das conclusões de que o sudário teria sido fabricado na Idade Média (entre os anos 1260 e 1390). Pergunto aqui se não serão dois pesos e duas medidas. Senão, vejamos: "A opinião pública embarcou nessa tese [da falsificação do sudário]"; "essa informação [existência de pólens] foi atropelada pelo rolo compressor do teste do carbono 14"; "Ela [a existência de pólens]devolve ao estudo do Sudário a seriedade que o assunto merece"; "detalhe que os autores da tese de falsificação esqueceram de explicar [como a peça foi produzida]"; "No esforço quase irracional de negar a autenticidade do Sudário, alguns estudiosos lançaram mão de todo tipo de hipóteses para explicar a formação da imagem"; "dando [as manchas d’água] à imagem um aspecto ainda mais hierático e misterioso"; "Parece óbvio que o autor do Código [de Pray] o utilizou [ao Sudário] como modelo"; "Esse experimento [do efeito da fumaça na datação do pano] por si só desqualifica completamente a datação [...]" – grifos meus.

Palavras fortes de apelo ao emocional induzindo a se imaginar que o estudo teria sido conduzido de modo descuidado (desleixado? tendencioso?): a isso não se chama sensacionalismo? Ainda mais que não se tratam de citações, mas de julgamentos do próprio autor? Qual a procedência desse julgamento?

O sudário é um objeto realmente fascinante, e julgo não necessitar destes subterfúgios para despertar o interesse das pessoas. Muitos outros pontos (incluindo diversos listados no artigo) revelam-se provocações instigantes para os céticos – uma falsificação tão detalhada?
Mas a crítica feroz se centra no método da datação por carbono-14, referido sete vezes (alguma conotação cabalística?) – e negando três vezes a validade do teste (Mat. 26:34-75?). Apesar disso, em nenhum momento nas dez páginas dedicadas ao assunto é explicado o que afinal vem a ser o carbono-14 e como é realizada a datação.

Troca de carbono
O carbono-14 é um isótopo (forma de um mesmo elemento químico, mas com peso diferente) do carbono; uma outra forma, bem mais abundante, é o carbono-12. O carbono-14 é instável e se transforma em nitrogênio-14, estável, liberando radiação. Essa quantidade perdida é reposta por um processo inverso que ocorre na alta atmosfera com o bombardeamento de 14N por radiações solares de alta energia, de modo que a quantidade de 14C na atmosfera é praticamente constante. O processo de transformação de uma forma instável para outra mais estável, denominada decaimento radioativo, se dá de maneira estocástica – isto é, não se pode prever quando exatamente um determinado átomo vai emitir radiação e se transformar; mas é possível prever o comportamento de uma certa quantidade: depois de um período, chamado de meia-vida, apenas metade dos átomos iniciais não terão decaído, após outro intervalo de mesma duração apenas a metade da metade (um quarto) restará íntegra e assim por diante. A meia-vida do carbono-14 é de 5.730 anos. Então, se soubermos a quantidade original de 14C de um objeto (obviamente contendo carbono) no momento de sua fabricação, e compararmos com a quantidade atual, poderemos saber a idade do objeto por meio de uma função logarítmica.

Como saber a quantidade inicial? No caso do tecido sabemos que foi confeccionado com fibra vegetal. As plantas fixam o carbono retirado do ar na forma de CO2. Sabemos que a razão entre 14C e 12C nas moléculas de CO2 no ar é de 1 para um trilhão (1012) – que vem a ser a proporção, então, nas plantas, nos animais que delas se alimentam e nos produtos derivados: vegetal ou animal (existem exceções, mas não é o caso do linho no qual foi urdido o sudário). Quando o organismo morre, cessa a troca de carbono com o ambiente e, pelo decaimento, a proporção de 14C para 12C se altera – quanto mais tempo se passa menor a proporção de 14C.

O teste de 1988
Em 1988, cientistas retiraram uma amostra do sudário, mediram com um aparelho a quantidade de 14C presente no CO2 formado na queima total do tecido e compararam com uma amostra equivalente de pano novo de linho (em lugar de utilizarem a proporção teórica original). Nessa medição chegaram à idade de cerca de 660 anos dentro de uma margem de erro.

O que se contesta então? Afirma-se que a amostra estava, como todo o sudário, contaminada com bactérias e pólens recentes, fazendo com que no teste resultasse uma idade menor do que a verdadeira. No artigo é citado um trabalho do cientista russo Dmitri Kuznetsov indicando que a fumaça produzida por um incêndio em 1532 atingindo o sudário poderia ter provocado uma troca entre o carbono do tecido e o da fumaça de até 25% do total (isto é, um quarto de todo o carbono do tecido pode ter sido substituído pelo carbono do ar e do material consumido no incêndio) – o que valeu o comentário do autor da matéria de Galileu de que a datação fora completamente desqualificada.

Um rápido cálculo indica que, corrigindo o eventual efeito máximo da fumaça, o ano da fabricação do pano deveria estar em torno de 1255 (não muito longe do mínimo estimado: 1260). Não parece ser tão desabonadora assim: estamos ainda muito longe do ano 33, no qual teria ocorrido a paixão de Cristo.

[Usando apenas o conteúdo de Química e de Matemática do nível médio é plenamente possível realizar tais cálculos. Se se for pensar de modo mais intuitivo é só verificar que um quarto do 14C do tecido será substituído pelo ar atmosférico, o mesmo ocorrendo com o 12C do tecido. Então, se por um lado se perde o 14C pela substituição de parte deste pelo carbono da fumaça (rico em 12C ), por outro ganha-se14C pela substituição de parte do 12C (em muito maior quantidade na amostra) pelo carbono da fumaça: a maior parte do 12C do tecido será trocado pelo da fumaça, mas uma pequena parte (1 em um trilhão) será trocada pelo 14C. Como na fumaça há comparativamente mais carbono-14 do que no tecido, ao final o ganho será maior do que a perda. Se houvesse o autor notado que a queda na proporção de 14C se relaciona com o tempo decorrido em uma função logarítmica, notaria que se esperaria mesmo uma alteração menor se o ano de fabricação estimado (1325 +/- 65) não fosse muito diferente do possível instante da contaminação (1532): se uma troca de 100% do carbono tivesse ocorrido na época de fabricação do sudário não se notaria efeito algum.]

A creditar-se a diferença restante à sujeira acumulada, bactérias e pólens, deveríamos ter uma quantidade de carbono quase duas vezes maior dessa fonte em relação ao carbono do tecido. Pesando o sudário cerca de 9 kg, isso significaria que teríamos mais de 4 kg de pó: a imagem não deveria ser visível debaixo de uma generosa camada de microorganismos e poeira.

Falso argumento
Se existem alguns empecilhos para a hipótese da falsificação, a da autenticidade encontra problemas ainda mais graves. O autor vê dificuldades incontornáveis numa diferença de 70 anos entre a idade estimada (que tem uma variação de 65 anos – para mais ou para menos) e a que poderia ser a real em caso de influência da fumaça (com uma variação em anos da mesma ordem); mas apresenta como se fosse natural a explicação de que a imagem teria se formado a partir de um brilho equivalente à detonação de um artefato nuclear emanado do próprio corpo envolvido pelo pano. E mais, que nesse instante esse corpo estaria flutuando no ar.

Argumenta ainda o autor que "o Sudário já passou por milhares de testes" e "de todos os experimentos, só o do carbono-14 contestou a autenticidade da peça". Creio que, apesar de usar no texto um termo da epistemologia da ciência, "falsear", não entenda de fato o que define a validade lógica de uma hipótese científica – não importa quantos experimentos apontem para a veracidade de uma idéia: se apenas uma observação negá-la, ela necessariamente é falsa (claro, estou simplificando um pouco as coisas, mas creio aqui que não estarei fugindo muito da verdade).

Ainda mais grave, essa argumentação é falsa também ao se mentir por mais duas razões: em nenhum instante é esclarecido que o teste do carbono-14 foi repetido mais duas vezes por laboratórios independentes com o mesmo resultado; outros tipos de testes indicam que o sudário não deve ser autêntico – e.g. a perícia forense não conseguiu detectar traços de sangue no tecido (as manchas, que são tidas como sangue por muitos, ao contrário deste não são escuraa, apesar da idade, e são quimicamente compatíveis com pigmentos utilizados na Europa medieval).

Pregações doutrinárias
Escrevi isto não com o intuito de fazer um libelo contra a autenticidade do Sudário (sim, sou, como qualquer um pôde perceber, cético quanto a isso), mas porque mais uma vez Galileu falhou no processo de divulgação científica. Este artigo contrasta fortemente com um outro publicado na mesma edição, "Cinco mil anos antes de Cabral", em que apesar de também reportar uma tese polêmica e contrária à visão científica tradicional, ainda que mais terrena (povos europeus e incas teriam se aventurado em terras brasileiras muito antes da descoberta oficial), não toma para si as afirmações dos proponentes da idéia, embora simpatize o autor com elas, e coteja com o depoimento de uma opinião cética.

Afirmações cabais de idéias pouco aceitas pela comunidade científica, negligência investigativa com as proposições, ausência de confrontação com opiniões contrárias, omissão de informação, propalação de meias-verdades e, mais grave, mentir categoricamente vão contra o bom jornalismo científico (e muito disso vai contra qualquer tipo de jornalismo – aproximando-se, perdões, mas a comparação é-me inevitável, de pregações doutrinárias).

Dentro do espírito ecologicamente correto poderíamos reprocessar o artigo e tê-lo assim reciclado como um modelo do que não se deveria fazer em termos de jornalismo (científico ou não).

Em tempo: Conforme é dito no próprio artigo, não é nova a alegação da existência de pólens da Palestina mais antigos que a data aceita para o pano. Mas, ao contrário do que se afirma, isso não foi "atropelado pelo rolo compressor" da datação por carbono-14, e sim posto em xeque pela inconsistência dos dados: amostras independentes revelaram conter o Sudário comparativamente muito menos pólen do que a amostra de Max Frei, um criminologista com a credibilidade já abalada anteriormente por sustentar a autenticidade de uma falsificação crassa – os diários de Hitler. Amostra a partir da qual foi feita a afirmação.

Mais informações (céticas, naturalmente) em: , em inglês, e <www.epub.org.br/correio/ciencia/cp960815.htm>.
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(Mais tarde pedi desculpas ao autor do texto na Galileu por comparar o texto dele com lixo. Mas, as críticas, eu as mantenho.)

*via @EliVieira tw.

domingo, 4 de outubro de 2015

Sistema privado de saúde melhor do que o público? Talvez não.

Ainda dentro do tópico sobre o retorno dos impostos no Brasil e a comparação com o setor privado, analisemos o desempenho da saúde no país entre os setores público e privado.

76% dos clientes de planos de saúde privado estão satisfeitos, entre seus 50,5 milhões de usuários atuais; apenas 36% dos usuários do SUS classificam o atendimento como muito bom ou bom. Há, então, uma margem de melhora no sistema público a ser buscada.

Isso, no entanto, não quer dizer que o sistema privado seja mais eficiente do que o SUS.
O sistema privado, realiza 262,2 milhões de consultas por ano (base de 2013); pelo SUS, são 1,4 bilhão de consultas. Isto é, 5,19 consultas/cliente-ano no caso privado e 9,36 consultas/usuário-ano no caso do SUS (considerando como usuários os 200 milhões de habitantes, menos os 50,5 milhões de clientes dos planos privados).

Corrigindo-se pelo índice de satisfação, são 3,74 consultas/cliente-ano satisfatórias nos planos privados contra 3,37 no SUS.

O sistema privado fatura R$ 108,2 bilhões/ano. No SUS são investidos R$ 92,2 bilhões/ano (2014). Então, cada milhão de reais faturados nos planos privados resultam em 0,0345 consulta satisfatória por cliente ao longo de um ano. No SUS, é 0,0366. Uma eficiência 5,8% melhor no SUS.
Essa margem aumenta quando consideramos que parte dos atendimentos dos planos privados são feito pelo SUS (e raramente há compensação); estamos desconsiderando também internações (mais pelo SUS), procedimentos complexos (mais pelo SUS).

Brasil oferece menos retorno dos impostos?

É preciso tomar cuidado com certas ideias que circulam a respeito de impostos e gastos públicos. Há um senso comum de que pagamos impostos demais, temos retorno de menos... Mas há muita distorção nessa história.

O Globo reproduz em reportagem um estudo comparativo entre 30 países sobre o IDH contra a carga tributária. Sem surpresas, o BRA aparece em pior posição nessa análise. Mas quando fazemos o mesmo tipo de comparação em um universo mais amplo de países, verificamos que o IDH do BRA é muito próximo (ligeiramente superior) ao esperado pela carga tributária. O que o estudo reportado em O Globo acaba mostrando é que, sem contar com detalhes como a estrutura socioeconômica do país, daria para melhorar um pouco mais.

Uma comparação mais reveladora é em relação à produtividade no BRA do setor público contra a produtividade do setor privado. Poderíamos esperar que a produtividade do setor público fosse muito pior do que o privado, dado ao que tanto ouvimos a respeito das ineficiências do estado. Mas análises econômicas mostram que, no BRA, o setor público tem uma produtividade cerca de um terço *maior* do que setor privado.

Ao longo do tempo tem havido melhora da produtividade do setor público - entre outras coisas, com o aperfeiçoamento dos processos, inclusive os de evitação de desvios. Precisamos ficar atentos para que essa melhora continue; no entanto, não cabe um discurso genérico contra impostos com base em premissas não sustentadas pelos fatos.