sexta-feira, 27 de maio de 2016

O tamanho da (sub)cultura do estupro

Republico o que escrevi alhures sobre a 'cultura do estupro' com modificações.
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Com dois casos recentes de estupro coletivo (cuidado! contém paywall poroso), um no Piauí e outro no Rio de Janeiro, um termo foi bastante destacado nas discussões sobre isso: a "cultura do estupro".
A "cultura do estupro" não é exatamente um exagero retórico feminista. Como um conjunto de valores e atitudes que toleram e incentivam o abuso sexual, principalmente, de mulheres e crianças, ela existe, sim, conforme podemos inferir a partir de pesquisas de opinião (como medimos conjuntos de valores, atitudes e percepções sobre outros temas como ciência e tecnologia).
Pelo tamanho e matização eu chamaria mais de "subcultura do estupro".
A pesquisa do Ipea de "Tolerância social à violência contra as mulheres" divulgada em 2014 levantou certas críticas em função de um erro que fez inflar o número dos que apoiariam a frase de que mulher com pouca roupa merecem ser atacadas; mas isso foi revisto.
Claro que a maioria da população percebe o estupro como algo essencialmente errado - e até abjeto. Mas a tolerância tende a aumentar em situações que se afastam da situação extrema (que algumas pesquisadoras feministas classificam como "ideação do estupro verdadeiro"): o estupro perpetrado por um completo desconhecido com a vítima relutando, mas dominada fisicamente (e até sob ameaça de uma arma), especialmente com a vítima sendo uma mulher considerada moralmente direita (idealmente, virgem ou casada, recatada, do lar...).
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Concordam total ou parcialmente:
"Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas.": 26%
"A mulher casada deve satisfazer o marido na cama, mesmo quando não tem vontade." 27,2%
"Se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros." 58,5%
"Mulher que é agredida e continua com o parceiro gosta de apanhar. " 65,1%
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quarta-feira, 18 de maio de 2016

Menos leitos, menos saúde?

Repostando o que publiquei alhures.
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Entre 2010 e 2015, 23.565 leitos hospitalares sumiram no SUS! Nossa! É o fim do mundo! Saúde já!
Bem, 45% disso (10.801) referem-se a vagas em psiquiatria. Desde 1978 há um movimento de reforma da política de saúde mental no Brasil, visando à desinternalização de pacientes psiquiátricos - chamado de desospitalização. Tratamentos mais humanos são prescritos - banimento de terapias de eletrochoques, enclausuramento e isolamento, fora os maus tratos nos manicômios - com o paciente continuando a viver em sua própria casa. No ano 2001 (governos FHC) é lançada a lei 10.216 que estabelece políticas de proteção aos portadores de transtornos mentais. Dispositivos seguintes atualizam e regulamentam o prescrito na lei.
5.021 são referentes a vagas na obstetrícia. Estamos em fase de declínio da taxa de natalidade. Além disso há movimentos para partos humanizados, naturais - com pouco tempo de internação - e até partos em casa - sem internação alguma.
Em 2013, a Folha repercutiu um estudo do Banco Mundial denunciando a ociosidade de boa parte dos leitos. A taxa de ocupação média no SUS sendo de apenas 45%. Seria (e de fato não deixa de ser) um desperdício de recursos importantes.
Muitos atendimentos, de menor gravidade, são agora em nível ambulatorial, sem necessidade de internação de pacientes. Aliás, o maior gargalo no SUS é o do atendimento ambulatorial.
Há, de fato, ainda insuficiências de leitos para algumas especialidades e para algumas regiões; mas o quadro geral é que o fechamento dos leitos no SUS não é essa notícia horrível (cuidado! contém paywall poroso) com que querem pintar agora.
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terça-feira, 17 de maio de 2016

Mais fácil ganhar na loteria do que ser acusado falsamente de estupro? Não.

Acho que nunca é demais lembrar a importância dos movimentos feministas no avanço da defesa dos direitos da mulher e respeito a eles (e não apenas de mulheres, já que acaba havendo intersecção com outras minoriais - como grupos LGBTTTs). A crítica a seguir *não* tem o objetivo de desmerecer esse trabalho fundamental. Ela é pontual e pretende ser construtiva.

Baseando-se em um texto do Buzzfeed, o perfil no twitter da Feminista Cansada alegou que há cinco (5) vezes mais chances de um homem (americano) ganhar na loteria do que ser falsamente acusado de estupro.
O número que importa, no entanto, é: dado que X é acusado de estupro, quais as chances de que a acusação seja verdadeira? (Ou, correspondentemente, de que seja falsa.)

Não sabemos. Há chutes e estimativas que vão de 2% a 40% (este último baseado em um artigo publicado, mas que já tem décadas e se refere a apenas uma localidade nos EUA).

Claro que, mesmo que fosse de 50%, não quer dizer que, diante de uma acusação, nada precisaria ser feito e/ou, pior, que não se deveria levar a acusação a sério e apenas rir da que acusa. Tampouco deve-se, mesmo que 1%, imediatamente prender o acusado sem necessidade de qualquer investigação e sem o devido processo legal.

A vítima deve sempre ser respeitada e acolhida. E receber apoio psicológico necessário. Ser levada a sério.

Ao mesmo tempo, é preciso fazer a devida investigação: verificar quais os indícios e proceder de acordo. Se houver indícios suficientes, indiciar o acusado para que responda ao processo. E, se considerado culpado, receber a sentença e cumprir a pena. Nunca submeter o acusado a um pré-julgamento sem maiores indícios.

De todo modo, o número que o Buzzfeed dá, de uma chance geral (sendo a acusação verdadeira ou não) de um homem, ao longo de um ano, ter uma chance de 1 em 2,7 milhões parece completamente furado. Em 2013, 16.863 pessoas foram presas por estupro, nos EUA. Consideremos que 90% sejam homens. Em 2013, a estimativa é de que havia 317.773.895 americanos. Isso dá uma taxa de 96 homens americanos presos por estupro a cada milhão ou 1 chance em 10.416,67 - 258 vezes maior do que a estimativa do Buzfeed. E isso incluindo bebês do sexo masculino.*

Como no caso da enquete sobre cantadas, e a história de um estupro a cada 12 segundos, está-se partindo de números ruins. O drama do estupro já é suficientemente grave para que seja considerado um problema a ser enfrentado com seriedade. Não é preciso estatísticas suspeitas para isso: apenas trabalha contra a causa, na verdade.

*Obs: ao fim o Buzzfeed faz outra comparação ruim. Usa o risco durante a *vida* de ser estuprado contra o risco *ao longo de um ano* de ser acusado de estupro. O melhor é que a comparação dê-se em termos de mesmo período

Se o valor de 1:33 fosse confiável como o risco de um homem ser estuprado pelo menos uma vez ao longo de sua vida, isso significaria um risco anual - considerando-se uma expectativa de vida média de 76,4 anos - de 403 em 1 milhão ou 1:2.481,39. As chances, ao longo de um ano, de vir a ser estuprado seriam 4,2 vezes as chances de ser acusado (falsamente ou não) de estupro.

Mas as estatísticas do Bureau of Justice Statistics do Departamento de Justiça americano indicam que em 2014 foram 284.350 casos de estupro. Se 10% desses casos envolverem vítimas do sexo masculino, as chances de um americano do sexo masculino vir a ser estuprado ao longo de um ano serãoá de 179 em um milhão ou 1:5.587,72. As chances de, ao longo de um ano, um americano do sexo masculino (adulto ou criança) vir a ser sexualmente violentado ésão 1,87 vez maiores do que de ser acusado de estupro. Se considerarmos apenas homens adultos, provavelmente as chances de vir, ao longo de um ano, a ser acusado (justa ou injustamente) de estupro devem ser pouco maiores do que a de ser vítima de estupro.

Disclêimer: o de praxe, sou machista, mas não me orgulho disso.