sexta-feira, 16 de julho de 2010

Muito além das palmadas

Não consigo entender o motivo da polêmica. Abaixo reproduzo o teor do projeto de lei que nem fala de palmadas.

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PROJETO DE LEI

Altera a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, para estabelecer o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos corporais ou de tratamento cruel ou degradante.

O CONGRESSO NACIONAL decreta:

Art. 1o A Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990, passa a vigorar acrescida dos seguintes artigos:

“Art. 17-A. A criança e o adolescente têm o direito de serem educados e cuidados pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar, tratar, educar ou vigiar, sem o uso de castigo corporal ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação, ou qualquer outro pretexto.

Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, considera-se:

I - castigo corporal: ação de natureza disciplinar ou punitiva com o uso da força física que resulte em dor ou lesão à criança ou adolescente.

II - tratamento cruel ou degradante: conduta que humilhe, ameace gravemente ou ridicularize a criança ou o adolescente.

Art. 17-B. Os pais, integrantes da família ampliada, responsáveis ou qualquer outra pessoa encarregada de cuidar, tratar, educar ou vigiar crianças e adolescentes que utilizarem castigo corporal ou tratamento cruel ou degradante como formas de correção, disciplina, educação, ou a qualquer outro pretexto estarão sujeitos às medidas previstas no art. 129, incisos I, III, IV, VI e VII, desta Lei, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.” (NR)

“Art. 70-A. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios atuarão de forma articulada na elaboração de políticas públicas e execução de ações destinadas a coibir o uso de castigos corporais e de tratamento cruel, tendo como principais ações:

I - a promoção e a realização de campanhas educativas e a divulgação desta Lei e dos instrumentos de proteção aos direitos humanos;

II - a inclusão nos currículos escolares, em todos os níveis de ensino, de conteúdos relativos aos direitos humanos e prevenção de todas as formas de violência contra a criança e o adolescente;

III - a integração com os órgãos do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública, do Conselho Tutelar da Criança e do Adolescente nos Estados, Distrito Federal e nos Municípios, Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, e entidades não governamentais;

IV - a formação continuada dos profissionais que atuem na promoção dos direitos de crianças e adolescentes; e

V - o apoio e incentivo às práticas de resolução pacífica de conflitos que envolvam violência contra criança e adolescente.” (NR)

Art. 2o O art. 130 da Lei no 8.069, de 1990, passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo:

“Parágrafo único. A medida cautelar prevista no caput poderá ser aplicada ainda no caso de descumprimento reiterado das medidas impostas nos termos do art. 17-B.” (NR)

Art. 3o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília,
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Vamos ler: "ação de natureza disciplinar ou punitiva com o uso da força física que resulte em dor ou lesão à criança ou adolescente". Vou destacar: "dor ou lesão". Quem pode ser contra impedir que se provoque dor ou lesão às crianças?

Upideite(21/jul/2010): Recomendo a leitura do texto de Ana Arantes de O Divã de Einstein: Um tapinha dói, sim. E muito.

5 comentários:

André R.D.Baptista disse...

Louváveis as intenções. Mas nós já temos leis boas o suficiente; o problema é que não são obedecidas. O Código Penal já lesão corporal, com agravante se for contra criança. Será que a solução é criar ainda mais leis? Neste caso especificamente, sequer temos uma lei aplicavel (conduta - sanção) apenas mais uma declaração de boas intenções.

none disse...

Lesão corporal sim, mas não castigo corporal.

Dor física não é definida como lesão - esta demanda alguma alteração morfoanatômica temporária ou permanente do corpo para ser caracterizada.

Além disso, lesão corporal demanda que haja ação ou omissão maliciosa - que tenha a intenção de provocar a lesão.

No castigo corporal, mesmo que os pais tenham apenas a intenção corretiva e não de causar a dor ou a lesão, o crime é tipificado.

Na verdade tem aplicabilidade sim, no contexto do ECA: a pena vai da advertência, à prisão e perda do pátrio poder: "estarão sujeitos às medidas previstas no art. 129, incisos I, III, IV, VI e VII, desta Lei, sem prejuízo de outras sanções cabíveis."

Mas vc tem razão de que não adiantam apenas leis, é preciso realmente aplicá-las.

Valeu pela visita e pelo comentário, André!

[]s,

Roberto Takata

André R.D.Baptista disse...

Se a lei não é pra valer, se não vai ser aplicada com seriedade na prática, então vai ser mais um demonstração de hipocrisia de nossa sociedade, e, pior, mais uma lei na gaveta para ser invocada na hora que for conveniente contra os inimigos do poder.
Por outro lado, imagine uma lei que criminalize o beliscão, o puxão de orelha e o cascudo. Se minha cunhada der um beliscão no meu sobrinho serei obrigado a representá-la sob pena de prevaricação? Isso num pais onde milhares de assassinatos não sequer investigados de uma forma séria? Para o policial corrupto ou preguiçoso, que não quer investigar uma assassinato, agora ele vai ter mais uma desculpa, está ocupado investigando um beliscão. Aliás nada mais conveniente para um policial corrupto do que investigar um beliscão. Ele é obrigado, por força da lei... por outro lado, vai enfiar a dona de casa no xadrez? ora, uma mão lava a outra, nada que um pequeno acerto não resolva (no fim o corrupto sai com a consciência tranquila, afinal, que lei abusiva essa).
Desculpe a minha casmurrice, mas esse é um ponto de vista de quem tem se dedicado a tentar aplicar a lei de forma sistemática, séria e impessoal (apenas o que manda a constituição). Lei não é brincadeira, então antes de inventar qualquer nova lei, façamos umas perguntinhas básicas:
1. É prioritária?
2. Que retorno prático esperamos?
3. Como vai ser a aplicação da lei?
4. Quantos recursos humanos serão dispendidos na aplicação dessa lei?
Eu entendo uma lei dessas no contexto de um país supercivilizado, uma Suécia, por exemplo, onde a criminalidade e a corrupção são baixos e onde a maioria dos problemas que desesperam os brasileiros já foram resolvidos.
Aqui no Brasil, me parece como querer construir a piscina e a chrrasqueira, quando a gente não tem dinheiro nem para terminar o cobertura da casa! Depois do trem-bala, da copa e da olimpíada, só faltava essa.
Não sei se é caso, pouco li a respeito, mas pilantras adoram se esconder atrás de criancinhas. O maior corrupto da história do aeroporto agora tem uma fundação que se dedica a combater a exposição de crianças na mídia. Bom Takata, já escrevi demais! Continue que o Blog está excelente, e perdoe um pouco minhas críticas! Grande abraço

André

none disse...

André,

As crítica são mais do que bem-vindas. Só - e obviamente não é o seu caso - não pode partir pra ofensas pessoais.

Em muitos sentidos, o ECA "pegou". Há, claro, ainda muitas coisas que precisam ser feitas.

De minha parte considero que as crianças e a proteção e promoção de seu bem estar físico e emocional é prioritária. Os demais itens depende de nós, cidadãos, para fazer valer. Seja diretamente, seja por meio de cobranças das autoridades.

A pena é proporcional à gravidade da conduta. Mesmo a inibição de beliscões já é uma conquista. Mas o alvo é mesmo de questões mais graves - pais que sistematicamente espancam e até torturam os filhos.

(Na verdade tem a modalidade culposa da lesão corporal. Mas mesmo assim a tipificação dada pelo projeto de lei é necessária. Novamente, para que se alcancem os abusos punitivos aos menores.)

[]s,

Roberto Takata

André R.D.Baptista disse...

"Mas o alvo é mesmo de questões mais graves - pais que sistematicamente espancam e até torturam os filhos."

Tenho certeza absoluta que o alvo é esse. Tenho certeza absoluta também que ninguém vai ser preso, condenado, ou sequer advertido por segurar com força (e provocando alguma dor) o pestinha que insiste em enfiar o dedo na tomada, ou dar uma leve palmada no diabinho que insiste em maltratar a irmãzinha, ou no desaforado que insiste o jogar os pratos finos da vizinha no chão para ouvir o estalo deles quebrando (mas pela nova lei deveria). Nem todas as crianças são pequenos aristoles que aceitam e assimilam uma argumentação lógica. Existe uma fase no crescimento da criança, e isso varia muito com o temperamento... Se você tiver três ou quatro crianças dessas para cuidar, uma tentando incenciar a casa, outra tentando jogar o cachorro pela janela, ou esfregando coco no tapete, acho que a argumentação tem grandes chances de não funcionar. Mas a nova lei, do jeito que está, proibe provocar dor, ponto, sem escala de avaliação. Não é interpretativa. O policial que detectar uma situação em que um adulto estiver provocando dor numa criança (por exemplo, segurando com força pelo braço uma criança que tenta se atirar no meio da rua entre os automóveis) terá o dever legal de interpelar e deter esse adulto, sob pena de prevaricação.
Não estou questionando a palmada em si, mas sim a lei inventada. Esse é um só um exemplo prosaico de nosso furor legislativo, de acharmos que vamos mudar o mundo escrevendo coisas no papel, sem nos atentarmos sobre que problemas vamos resolver e quais os custos e beneficios envolvidos. Acho que podemos definir a "feel good law", uma lei para apaziguar os espíritos, e acharmos que fizemos alguma coisa. Mas para o agente da lei, mais um motivo de ansiedade, para o honesto, mais um trunfo de barganha, para o corrupto.