terça-feira, 3 de abril de 2012

Homeopatia na SciAm Brasil

A Scientific American Brasil, veículo da Duetto Editorial (sob licença da Scientific American Inc.), publicou um texto sobre homeopatia sob o título "Eficiência Questionada da Homeopatia".

O texto no entanto não questiona a homeopatia, antes, a defende. Ou tenta defender. Ataca, com certa correção, o abuso de agrotóxicos nos sistemas de produção vegetal, mas em que isso mostra a eficácia da homeopatia no combate a pragas agrícolas é algo difícil de se atinar.

A passagem mais constrangedora é: "a homeopatia não se relaciona com a química, mas com a física quântica, pois trabalha com energia, não com elementos químicos que podem ser qualificados e quantificados."

Primeiro: homeopatia trabalha com compostos químicos - todas as tinturas e diluições são produzidas e identificadas de acordo com os compostos e misturas correspondentes ao princípio ativo - p.e. arsenicum album, que é produzido por diluições sucessiva de trióxido de arsênio e em condições bem quantificadas - tanto é que se usam denominações de diluição como 12X (a tintura original é diluída 12 vezes tomando-se uma parte em dez a cada vez). Portanto qualificados e quantificados.

Segundo: a física quântica também lida com compostos químicos, por exemplo, a hibridação dos orbitais de carbono que formam ligações duplas.

Terceiro: energia é um conceito que não diz respeito somente à física quântica; a própria química lida com energia - como a entalpia.

Quarto: Não importa se a homeopatia lida ou não com compostos que podem ser qualificados ou quantificados. Importa se ela tem ou não efeitos curativos sobre sistemas. A literatura científica indica bastante claramente que *não* tem efeito - tirante eventual efeito placebo.

Quinto: Não há nada na física quântica que apoie a homeopatia e seus princípios da cura pelos semelhantes e potencialização por ultradiluição.*

Em suma, um texto mal escrito que não traz nenhum resultado indicativo de que a homeopatia tenha algum eficácia. Isso causou um pequeno burburinho no twitter: aqui, aqui, aqui.

Em defesa, a SciAm Brasil publicou o tweet: "Sobre a nota de homeopatia (abril): refere-se a um curso sério da UFV, com apoio do CNPq e envolvimento da Unesco/Fundação Banco do Brasil".

Mas:
a) Não é uma nota, é um texto apologético;
b) O curso da UFV é só citado, não é o objeto principal do texto;
c) O critério de seriedade é discutível - apenas ter a marca do CNPq, Unesco e Fundação Banco do Brasil(?) não indica que haja validade nas técnicas;
d) O curso (de extensão) não é apenas sobre homeopatia, mas inclui também plantas medicinais e produção orgânica.*

O caso foi parar no blogue Science-Based Medicine (SBM). E, entre os comentários, o da editora-chefe da SciAm americana: Mariette DiChristina. Uma crítica bastante contundente à publicação pela versão brazuca:
"mdichristinaon 03 Apr 2012 at 1:55 pm
I’m grateful to Tim Farley for letting me know about this post so that I can clear up matters.
Scientific American does _not_ condone the pseudoscience of homeopathy.Duetto, the company that licenses the right to produce Scientific American in Brazil, is an independent entity; it purchases the right to translate Scientific American’s articles and also to add local stories. I have inquired about this item, and have been told included this article was included because the work is 'has support of Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) the main brazilian agency for scientific research.' I do not yet know what that 'support' entails–whether it is funded by that agency or whether it means something else.In any case, this piece clearly should not have been published. I have brought this problem to the attention of both the editor of the Brazilian edition and the head of the Scientific American business, who manages relationships with licensees.Needless to say, I deeply regret the appearance of this fatally flawed article, which would never have been published if Scientific American had been consulted beforehand.I am easy to find on Twitter (at mdichristina) and e-mail (mdichristina at sciam.com) if you have future questions about Scientific American.(via @luizbento)


A motivação que vejo percebo na publicação do texto é a visão do editor-chefe da SciAmBrasil. Ulisses Capozzoli tem uma ideia de ciências menos hard do que o usual dos cientófilos mais ativos. Não é uma opção ruim em si. Isso permite um pensamento menos bitolado - como aquela oposição chata a respeito das duas culturas e a visão tacanha de que as ciências humanas não são ciências de verdade. Mas traz esse perigo de incluir no círculo científico bobagens do tipo homeopatia, ufologia, astromancia e outras pseudociências.

Coisa similar - e agravada pela visão de curto prazo de pura vendagem - corroeu completamente a respeitabilidade da Superinteressante.


Disclêimer: Conheço Capozzoli pessoalmente e respeito seu trabalho. Não falei com ele sobre o tema.

*Upideite(04/abr/2012): Adido a esta data.
Upideite(04/abr/2012): Manterei listagem de outros blogues e páginas que também falam sobre isso
O Lado Oculto da Lua (reproduzido também no Bule Voador)
Via Gene
O Telhado de Vidro, sobre a resposta de Capozzoli.
Ceticismo.net
Chi vó, non pó
Cultura Científica
DNA Cético
Carlos Orsi
Desafio 10:23 (reproduz o publicado no SBM)
Upideite(05/abr/2012): Ulisses Capozzoli reconhece o erro da publicação do texto. (via @samir_elian)

10 comentários:

Alvaro Augusto W. de Almeida disse...

Precisei ler duas vezes o texto da SciAm para me dar conta de que se estava, em primeiro lugar, defendendo a homeopatia e, segundo, defendendo-a com um argumento dos mais estranhos: o de que, quando aplicada à agricultura (onde nem o efeito placebo é válido), a homeopatia geraria menos desequilíbrios do que os métodos alopáticos convencionais (i.e., agrotóxicos e fertilizantes).

Vamos esperar que a SciAm volte a seu rumo, ou vou passar a destinar meus R$ 11,90 a outros fins.

Cardoso disse...

Eu nunca fui dessas boiolices de promover boicotes e ficar ameaçando cancelar assinatura de jornais, mas esse caso foi diferente.

A Scientific American é uma revista que eu lia, comprando a preço de ouro em edição importada e que fiquei super-feliz quando vi a versão nacional.

Agora eu perdi o tesão. Vi que estão mais preocupados em vender a qualquer custo, procurando o popularesco. Estão destruindo um nome sério, e não quero fazer parte dela.

Se a revista sobreviver, e um dia melhorar, por favor me avisem. Até lá, gastarei meu dinheiro com a Wired.

none disse...

Alvaro, Cardoso,

Bem, o Capozzoli reconheceu o erro:
http://blogdasciam.blog.uol.com.br/arch2012-04-01_2012-04-07.html#2012_04-05_19_00_27-11592244-0
---------

[]s,

Roberto Takata

Tony Marmo disse...

Respeitosamente discordo. Na verdade, os detratores da homeopatia é que, sem ofensas da minha parte, revelam ignorar pontos importantes daquilo que falam.

Não entendi a retratação do sujeito. Mas, pseudo-científico é o ataque à homeopatia e a atitude preconceituosa, e diria mesmo sem-respeito, de uma nota que diz que os princípios da homeopatia não têm validade científica. Primeiro porque quem escreve confunde validade científica com suporte em dado empírico. A validade científica consiste em poder formular hipóteses testáveis ou falsificáveis, que é o caso da homeopatia.

Ademais, o princípio da cura pelos semelhantes, ao contrário do que pressupõe a nota acima, tem comprovação empírica sim e não se limita à homeopatia. Exemplos mais que conhecidos: veneno de cobra se cura com soro à base do veneno de cobra. As vacinas são feitas dos próprios agentes causadores das doenças. Remédios alopáticos que curam a mesma doença muitas vezes não podem ser utilizados em conjunto porque um anula o efeito do outro. Abundam as provas de que o semelhante cura o semelhante e esse princípio inclusive tem de ver com competição entre seres vivos em ecologia e nos estudos evolutivos.

Quanto às ultra-diluições, questionar sua eficácia não faz mal academicamente. Mas, querer descartar uma teoria que foi criada antes da física quântica porque a física moderna ou a química não proveria os conceitos que a justificam é um erro pior. É óbvio que Hanemann não tinha à sua disposição os conhecimentos que foram descobertos depois do seu tempo. Tampouco é sensato achar que a física e a química no seu atual estágio podem dar a palavra final a tudo, que tudo foi descoberto nesses dois campos e que o que se pensou antes está necessariamente descartado. Não é assim. Até porque estamos até hoje, em vários domínios do conhecimento, lidando com questões deixadas por outros vários séculos antes de Hanemann ou Newton.

none disse...

Tony Marmo,

Há um engano qdo vc diz: "A validade científica consiste em poder formular hipóteses testáveis ou falsificáveis, que é o caso da homeopatia."

Isso define, sob Popper, não a *validade* científica, mas o *caráter* científico de uma hipótese ou teoria.

Ocorre que não basta ser falseável, tem que *não* ter sido falseado. A homeopatia é uma hipótese falseada de acordo com os melhores dados.

"Mas, querer descartar uma teoria que foi criada antes da física quântica porque a física moderna ou a química não proveria os conceitos que a justificam é um erro pior."<=Aqui ninguém fez isso. O que se fez foi rebater a menção à física quântica em suporte à homeopatia.

"Tampouco é sensato achar que a física e a química no seu atual estágio podem dar a palavra final a tudo, que tudo foi descoberto nesses dois campos e que o que se pensou antes está necessariamente descartado."<=Também ninguém fez isso aqui. O que se fez foi argumentar contra a afirmativa/negativa da autora do texto de que a homeopatia tivesse vínculo com a química.

De resto, é apenas análise de fatos: não há nenhum apoio empírico para a validade da hipótese de que a homeopatia funcione (para além do efeito placebo).

Grato pela visita e pelo comentário.

[]s,

Roberto Takata

Alvaro Augusto W. de Almeida disse...

A retratação do redator da SciAm, embora louvável, me deixou um certo mal estar. Sim, é fato que a ciência está sujeita a erros e é justamente esta uma das características que a afasta da religião e do misticismo. Contudo, isso não significa permitir que revistas de divulgação científica possam cometer tais erros. Ainda mais quando se trata de uma hipótese falseada há muito e de várias maneiras. Não se tratou de "entrar em uma onda", como a da fusão a frio ou coisa parecida. O que me parece é que o editor simplesmente "deixou passar" o texto sem lê-lo. Ou então que tentou fazer um "experimento editorial".

Leandro R. Tessler disse...

Como o Alvaro estou um pouco incomodado com a retratação do editor da SciAm Brasil. Claro que trata-se de um ato raro e corajoso, reconhecer um erro grave. Ele está de parabéns por isso.
No entanto, esse pedido de desculpas deve ser relativizado pelo texto que acompanha. O editor insiste que o CNPq apóia o curso (ele afirma isso sem verificar se essa afirmação é verdadeira. Ela é falsa porque o CNPq não apóia curso algum). Ele apela para a legalidade da prática da homeopatia como se isso a validasse enquanto ciência. Ele compara seu erro de julgamento com falhas na história da ciência. Nada a ver.
Para completar, o post anterior no blog é uma apologia da acupuntura, que ele considera reabilitada após 40 anos.
O pedido de desculpas vem após uma desautorização contundente por parte da editora-chefe da Scientific American matriz, e isso não é mencionado no post.
Como disse o Alvaro, a retratação é louvável. Só que dentro do contexto eu esperava muito mais, desautorizando o artigo e propondo artigos sérios sobre o asusnto para cumprir a missão da revista: trazer ao público a beleza e o pensar científico.

none disse...

Alvaro, Tessler,

Sim, tb acho que haja coisas a se criticar no post de desculpas. Mas acho que mesmo que fique só nisso já está de bom tamanho.

[]s,

Roberto Takata

via gene disse...

Muito bom, obrigada por mencionar o viagene no seu comentário!
Saudações!
ana

none disse...

Oi, Lessinger,

Eu que agradeço a visita aqui.

[]s,

Roberto Takata