sábado, 22 de fevereiro de 2014

Regulamentar ou proibir a prostituição?

Em função do projeto de lei do deputado federal Jean Wyllys de regulamentação da prostituição (ou trabalho sexual) no Brasil, parte dos grupos feministas - autodenominados abolicionistas - manifestaram sua contrariedade e a enfática defesa da proscrição legal da prática: sua criminalização completa (naturalmente, não direcionada às prostitutas - e prostitutos -, mas aos clientes). P.e. a SOF, o CoFem da LiHS, o Coletivo Nacional de Mulheres da CUT. E não apenas mulheres. Embora eu não tenha uma opinião fechada especificamente sobre o projeto de J.W., eu sou contra a ideia de criminalizar a prostituição (inclusive os clientes) e favorável à sua devida regulamentação.

Vou tentar deixar claras algumas coisas antes de prosseguir:
a) Sou totalmente a favor dos direitos das mulheres ao tratamento equitativo: elas devem ter condições iguais de trabalho, salário, família (p.e. os homens devem dividir as tarefas domésticas e os cuidados com os filhos), etc. E devem ser totalmente respeitadas em sua integridade física, moral, psicológica, etc. e respeitadas como seres autônomos: capazes que são de tomar e se responsabilizar por suas próprias decisões;
b) Envolvendo a questão acima, mas indo além, sou totalmente contra a exploração sexual* de mulheres (e de seres humanos e até de não humanos). A exploração sexual deve, sim, ser combatida e abolida.

Obviamente os grupos abolicionistas também concordam com os dois pontos acima. Mas, então, como se dá a divergência?

Fundamentalmente porque os grupos abolicionistas redefinem a prostituição como: "uma prática através da qual é garantido aos homens o acesso grupal e regrado ao corpo das mulheres". *Por definição*, prostituição passa a ser exploração sexual, aí, como se é contra a exploração sexual, não é possível se aceitar a regulamentação e nem mesmo tolerar sua continuidade: é preciso bani-la.

Mas se partimos da definição usual de prostituição: "sexo mediante pagamento (em espécie, mercadorias ou serviços)" chegamos a uma conclusão completamente diferente e, em vários sentidos, oposta à dos grupos feministas abolicionistas.

Em uma situação igualitária, na qual a mulher tem plena liberdade de decisão (ou pelo menos tão livre quanto seja minimamente aceitável que um ser humano possa ser), ela querer oferecer sexo mediante pagamento é tão somente um serviço. Como a maioria das feministas abolicionistas e dos liberais/progressistas (como eu) não têm uma visão moralizante a respeito do sexo, aceita que seja um elemento cuja presença na vida humana deva ser vista com naturalidade (ei, não estou falando em voyeurismo, seu safadinho), não seria um alvo, em si, de escândalos e necessidade de proscrição.

A objeção que se pode levantar é que isso se dá em uma situação igualitária e não é o que temos atualmente. Não há como discordar disso. Mas, de um lado, isso significa que a situação igualitária deve ser alcançada - não significa necessariamente que a busca por sexo com prostitutas deva ser criminalizada; de outro, os dados mostram que, a situação desigual (o suficiente para caracterizar um cenário de exploração sexual, na qual a mulher tem seu poder de decisão subtraído) não é universal: uma parte substancial das prostitutas estão em posição (sem trocadilhos) de escolher entre ser ou não prostituta.

Em levantamento feito em 2000, 53% das prostitutas ganhavam mais de 4,5 S.M. (salários mínimos, não sadomaso) ou R$ 680 reais/mês (R$ 1.642 atualizados pelo IPCA). Em um universo estimado de 1,5 milhão de trabalhadores do sexo, mesmo os 2% com curso superior, correspondem a 30 mil prostitutas - compare-se com os pouco menos de 17 mil juízes de direito em atividade no Brasil. Mesmo sob o argumento de que as prostitutas que possam escolher sejam a exceção, são uma exceção suficientemente numerosa para serem levadas em consideração. Para a fração sem condições de escolha: sejam as 4% analfabetas, sejam as 98% sem ensino superior - naturalmente devem ser protegidas, é preciso programa (sem trocadilho) que permita que elas saiam da prostituição e se qualifiquem para outras ocupações que desejarem.

Mas também analisemos os efeitos da regulamentação e os da criminalização.

Relatório da ONU de 2012 sobre os efeitos da legislações da Ásia e da Oceania sobre prostituição mostra que a proibição da prostituição resulta em uma precarização das condições das prostitutas, expondo-as a maiores riscos de contrair HIV:
"Criminalization increases vulnerability to HIV by fuelling stigma and discrimination, limiting access to HIV and sexual health services, condoms and harm reduction services, and adversely affecting the self esteem of sex workers and their ability to make informed choices about their health."

Um estudo econométrico de 2013 sobre a regulação da prostituição concluiu:
"Our theoretical analysis of how prostitution laws affect voluntary prostitution and sex trafficking yields several conclusions. First, if the regulator aims to eradicate trafficking and restore the equilibrium that would arise in an unregulated market without traffickers, then the optimal regulatory framework combines licensed prostitution with severe criminal penalties on johns who purchase sex from unlicensed prostitutes. So far this model has not been implemented by any country, even though it is a combination of two existing regulatory frameworks. Second, if the objective is to abolish all – voluntary and involuntary – prostitution, the Swedish model of criminalizing all demand is the optimal regulatory framework. In the absence of voluntary prostitution, the Swedish model and the aforementioned one are equivalent. Finally, criminalizing johns is always superior to criminalizing prostitutes. The former is more effective against trafficking and comes without the by-product of inflicting criminal penalties on trafficking victims."

O modelo sueco de proibição da prostituição é bom para abolir a prostituição - o que é bem um truísmo. Mas só é um objetivo desejável por si se se parte da definição de prostituição como exploração sexual. Sim, é bom também para se eliminar a parte da prostituição que é exploração sexual, mas aí a regulamentação também é boa. E a regulamentação tem a vantagem de não impedir as mulheres (e homens) que, por livre e espontânea vontade, desejarem fornecer serviços sexuais pagos o façam.

Ou seja, a criminalização da demanda não tem uma vantagem real sobre a regulamentação: de um lado expõe as prostitutas a condições mais precárias, de outro não é superior no combate à exploração sexual. Só é vantajosa sob a perspectiva da nova definição de prostituição como uma foma de exploração sexual das mulheres.

Mas mesmo que se suprima completamente a prostituição, se não há combate às desigualdades entre homens e mulheres, as ex-prostitutas apenas encontrarão outras formas de serem exploradas e expropriadas. Com o devido combate, mesmo sem a proibição - sob o argumento de que as mulheres só se prostituem por falta de perspectivas -, a prostituição deixa de fazer sentido.

A regulamentação é vantajosa mesmo se não nada for feito para se combater as desigualdades: protege as prostitutas de condições precárias.

*Upideite(22/fev/2014): A ONU, um tanto recursivamente, define exploração sexual como: "any actual or attempted abuse of a position of vulnerability, differential power, or trust, for sexual purposes, including, but not limited to, profiting monetarily, socially or politically from the sexual exploitation of another"

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